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Pe. Alexandre Palma
Lutero: outro aniversário

Dos meus tempos de escola, lembro-me de ter estudado qualquer coisa sobre Lutero e a reforma luterana. Acho ter sido essa a única ocasião em que aí me encontrei com uma questão e um discurso teológicos. Talvez outras tenham existido. Mas é sintomático que essa permaneça na minha memória como o primeiro contacto com a história da teologia. Como é sintomático que essa seja, porventura, a única grande entrada da teologia nos nossos curricula escolares. É que, sem desprimor para outros protagonistas e eventos, Lutero e o movimento que com ele teve início transformaram o cristianismo como o conhecemos e, assim, transformaram também um pouco do mundo que somos.

De Lutero, a imagem foi-se alterando conforme os tempos e os intérpretes. Importa ter isto presente, agora que, neste 2017, passam os 500 anos da afixação das suas 95 teses. Há o Lutero reformador, animado pela busca de um cristianismo mais autêntico. Há o Lutero protestante, pai de todo um novo filão eclesial. Há o Lutero moderno, pela autonomia que a Reforma reivindicou para o sujeito. Há o Lutero medieval, pelo tanto que herdou de tantos que o precederam. Há o Lutero exegeta, pela centralidade que deu à Bíblia. Há o Lutero herege, pela perturbação que instalou na doutrina católica. Há o Lutero herói, pela forma como causticou o clericalismo romano. Há o Lutero pessimista, pelo seu agostinianismo extremado. Há o Lutero crente, pela confiança na graça divina. Há o Lutero atormentado, pelo medo da condenação. Há o Lutero revolucionário, pelas amarras que libertou da tutela papal. Há o Lutero réu, pela culpa da divisão na Igreja. Há o Lutero universalista, pela consagração da comum identidade baptismal. Há o Lutero particularista, pelas suas posições anti-semitas. A multiplicidade de imagens possíveis dá notícia da complexidade de Lutero e de tudo o que, a partir dele, se desencadeou. Todavia, essa multiplicidade decorre também da forma como cada intérprete se coloca diante deste célebre alemão. Porque, como bem nota W. Kasper, «existem poucas personalidades históricas que, como Martinho Lutero, e após 500 anos, consigam ainda atrair magneticamente quer amigos quer inimigos».

Para lá de toda esta legítima diversidade, importava libertar a narrativa sobre Lutero do labirinto da polémica das indulgências ou da estrita dialéctica «Reforma protestante versus Contra-Reforma católica». Para bem da memória do próprio Lutero, deixando que o melhor do seu legado pudesse ainda mostrar a sua força interpelante. Não que esses tópicos não estejam lá, no fenómeno luterano. Mas porque fazer deles a sua quinta-essência gera mais uma caricatura que um retrato. Porque mais que esta ou aquela reforma, o tempo de Lutero é um tempo de múltiplas reformas, na Igreja e para lá dela. Porque reformadores da Igreja seus contemporâneos foram também Inácio de Loyola ou Teresa de Ávila ou, inclusivamente, Trento. Porque substantivas reformas do mundo de então foram também a descoberta do Homem (Humanismo) ou a descoberta de novos continentes e povos (Descobrimentos). Porque se a irritação de Lutero se concentrou na prática das indulgências, o seu móbil teológico não foi apenas uma pergunta de quinhentos, mas do crente de hoje e de todos os tempos: «Como posso encontrar um Deus misericordioso»?