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Guilherme d'Oliveira Martins
Império do Espírito Santo…

A cultura portuguesa está muito marcada pelas festividades do Pentecostes, com que terminámos as solenidades da Páscoa. Basta lembrarmo-nos de que o dia da Autonomia dos Açores corresponde à celebração do Espírito Santo. Aliás, as ilhas dos Açores são todas elas Terceiras, em honra da terceira pessoa da Santíssima Trindade. A ilha Terceira é a única que mantém a designação, que nada tem a ver com a ordem do seu suposto achamento. Jaime Cortesão e Agostinho da Silva, mas também Vitorino Nemésio e Natália Correia, salientaram a importância da tradição da Festa do Espírito Santo, que, depois do Concílio de Trento, apenas se manteve nos Açores e no Brasil. Em Portugal houve poucas exceções, não podendo esquecer-se a Festa dos Tabuleiros de Tomar, que se relaciona intimamente com este arreigado e antigo culto popular. Foram os franciscanos espirituais, cuja chegada a Portugal se relaciona com o casamento de D. Dinis com a Rainha Santa Isabel, que trouxeram, ao que tudo indica, o culto popular do Espírito Santo, em estreita ligação com o pensamento de Joaquim de Flora, monge beneditino calabrês, para quem às Idades do Pai (do Antigo Testamento) e do Filho (da revelação do Novo Testamento) sucederia uma Terceira Idade do Espírito Santo, caracterizada pela conciliação universal. Essa seria a idade da graça redentora, onde não haveria necessidade de leis ou instituições disciplinadoras da fé, já que esta seria universal e baseada diretamente na inspiração divina, pelo que poderiam ser dispensadas as estruturas institucionais do poder temporal da Igreja. Não por acaso, na «Divina Comédia», Dante coloca Joaquim de Flora no Paraíso, graças às suas qualidades proféticas.

A festa do Espírito Santo, que persiste nos Açores e no Brasil de lés-a-lés, preparada longamente pelas irmandades e seus mordomos, tendo como referência os Impérios, espalhados por toda a parte, corresponde a uma antecipação ou prefiguração desse tempo libertador – sendo distribuído a todos, sem exceção, o bodo do Espírito Santo, constituído pela sopa rica, pela alcatra, pela massa sovada, pelo pão e pelo vinho. Um padre jesuíta do século XVI, Fulvio di Gregori, descreve em pormenor a festividade, a partir de Goa, que nos soa próxima e familiar: «Costumam os portugueses eleger um imperador pela festa de Pentecostes e assim aconteceu também nesta nau S. Francisco. Com efeito, elegeram um menino para imperador, na vigília de Pentecostes, no meio de grande aparato. Vestiram-no depois muito ricamente e puseram-lhe na cabeça a coroa imperial. Escolheram também fidalgos para seus criados e oficiais as ordens, de modo que o capitão foi nomeado mordomo da sua casa, outro fidalgo foi nomeado copeiro, enfim, cada um com o seu ofício, à disposição do imperador. (…) Depois, no dia de Pentecostes (ou Páscoa do Espírito Santo), trajando todos a primor, fez-se um altar na proa da nau, por ali haver mais espaço, com belos panos e prataria. Levaram, então, o imperador à missa, ao som de música, tambores e festa e ali ficou sentado numa cadeira de veludo com almofadas, de coroa na cabeça e cetro na mão, cercado pela respetiva corte, ouvindo-se entretanto as salvas de artilharia».

O Padre António Vieira na «Chave dos Profetas» invoca o calabrês, relacionando-o com o sonho de Nabucodonosor, referido no Livro de Daniel, da estátua, que tinha a cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, as pernas de ferro e os pés metade de ferro e metade de barro. Para Vieira, o Quinto Império sucederia ao Assírio, ao Persa, ao Grego e ao Romano e basear-se-ia na Paz, na Justiça e no Espírito, muito mais do que no poder de um qualquer povo sobre outros povos… Fernando Pessoa recuperou a ideia, centrada no espírito e na língua - «Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda a verdade / Que morreu D. Sebastião». E «a terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou…». Não é de poder e de cobiça vã que falamos. E comemorámos há dias Santo António de Lisboa, autêntico símbolo do franciscanismo, discípulo de Santa Cruz de Coimbra e do ensino de S. Teotónio. O Papa Francisco tem recordado com especial força o legado de S. Francisco de Assis, designadamente na Encíclica «Laudato Si’». Lembrar como a cultura portuguesa tem estado ligada a esse património comum é motivo de especial atenção, sobretudo quando o Concílio Vaticano II integrou, de um modo muito fecundo, na religiosidade moderna a importância emancipadora desse espírito, que une a Ceia de Emaús e o Pentecostes, e permite aproveitar o melhor de nós mesmos e a capacidade de compreender os Outros e de não nos sermos indiferentes…