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António Bagão Félix
Combater a intolerância, a relativismo e a indiferença

Perante actos bárbaros de terrorismo, sempre se coloca a questão, jamais resolvida, dos limites da tolerância, ou de outro modo, da fronteira entre tolerância e intolerância.

A tolerância é fundamentalmente a expressão da aceitação da diferença face a uma determinada regra moral, religiosa, cultural, social. Com a mistura de diferentes (para não dizer opostas) concepções de vida em sociedade, a primeira condição necessária, ainda que insuficiente, para uma tolerância sadia é a de, pacificamente, se concordar em discordar.

A tolerância exige uma reciprocidade, ou seja, torna necessária a inclusão promovida pela sociedade e a inserção desejada pelos incluídos. A esta soma de atitudes se chama participação, isto é cada parte no todo e ninguém fora do todo. O que hoje vemos preocupantemente são situações de recusa de inclusão de um grupo por uma determinada sociedade e situações de grupos que rejeitam as regras básicas de inserção e respeito pela sociedade que os acolhe.

Há, porém, um limite para a tolerância: a ditadura da intolerância. Não é possível ser tolerante para quem só transpira intolerância. Sobretudo a que se exprime por acções violentas e extremistas. O fanatismo – seja em que domínio for –  é o caminho certo para a proliferação da intolerância. Como escreveu o escritor americano Oliver W. Holmes, “a mente do fanático é como a pupila dos olhos: quanto mais luz recebe mais se contrai”. Outros inimigos da tolerância são o radicalismo fundamentalista e absolutista e o relativismo moral endémico que corre o risco de se confundir com uma falsa tolerância corrosiva e diluente, onde nada vale porque tudo parece valer. Do relativismo à indiferença vai um pequeno passo. E a indiferença – ainda que, por vezes, disfarçada de um fugaz e mimético apego, que a catadupa noticiosa do quotidiano rapidamente esmorece ou anula – é o pior dos males civilizacionais.

A memória já não é o que era. Acontecimentos graves esfumam-se, anulados ou esbatidos pelos que se lhes sucedem numa girândola vertiginosa onde quase só há espaço para o estar e onde parece já não caber o ser. Tudo se transforma apenas numa futura efeméride. A única memória que perdura é a da irreversibilidade da morte. Há sempre candentes chamamentos, exaltação de sentimentos, lutos sociais e palmas, palavras pesadas de circunstância, promessas inúteis e declarações pomposas. Depois, é o lugar para o sótão da memória. Para os que desapareceram, passado o percurso dos dias seguintes, resta a memória dos próximos. A “normalidade” volta às notícias, às conversas, aos facebook e outras expressões virtuais de relação. A tudo isto acresce o desvalor da morte, quase banalizada. Primeiro, é um choque telúrico e também de medo, depois é um registo estatístico e comparativo. Tudo graduado e hierarquizado. Morte aqui é assunto grave. No Iraque, na Síria, no Paquistão, no Afeganistão, no Mediterrâneo, sempre em escala brutal e recorrente, é rodapé noticioso.

O que o radicalismo aproveita, a indiferença semeia: o relativismo.

O que o radicalismo banaliza, a indiferença desvaloriza: o mal.

O que o radicalismo avilta e corrompe, a indiferença escarnece: a memória.

O que o radicalismo desvia para o mal, a indiferença deixa instalar como fim supremo: o dinheiro.

O que o radicalismo finge combater, a indiferença trivializa: a corrupção.

O que o radicalismo anula, a indiferença corrompe: o respeito pela Vida.

O que o radicalismo perpetua, a indiferença anestesia: a pobreza.

O que o radicalismo jamais tem, a indiferença mediatiza e nivela qual “sentimento único”: a compaixão.

O que o radicalismo fanatiza por excesso, a indiferença desconsidera por defeito: a religião.

O que o radicalismo usa demoniacamente, a indiferença tornou dispensável: Deus.

Não admira, neste contexto, a coligação negativa entre o radicalismo pretensamente teocrático e a indiferença individualista. Os extremos, embora não se fundam, tocam-se. De um lado, um obscuro e insuportável moralismo; do outro, um neutral, estéril e asséptico amoralismo. O que prova que, em ambos os casos, aquele moralismo e este amoralismo nada têm a ver com a ética universal baseada na centralidade e dignidade inalienáveis da pessoa e na promoção do bem comum.

Tolerância zero para o fanatismo e para a indiferença. Mas também para as suas consequências de banalização do mal e de publicidade ad nauseam oferecida aos intolerantes e aos actos de terrorismo.

Na desgraça de Barcelona, houve um gesto que vale mais do que todas as palavras. O pai espanhol de uma criança de três anos que morreu no atentado, disse que sentia “necessidade de abraçar um muçulmano”, para esbater e amenizar a dispersão de ódio, tendo o imã muçulmano, que vive na localidade daquele pai, acedido ao seu pedido. O momento do abraço ocorreu à porta da mesquita onde foi realizada a homenagem e encerra, em si, um gesto corajoso e de incitamento à paz, mesmo nas mais terríveis circunstâncias em que pais jovens perdem um filho do seu sangue.

Ao ver as imagens, continuo a crer na vitória do Bem.

 

(texto escrito segundo grafia anterior ao Acordo Ortográfico, por opção do autor)