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Victor Machado Gil
O retrocesso civilizacional

Subjacente aos Direitos Humanos e toda a construção definidora da nossa humanidade tal como a entendemos, está um conjunto de princípios onde avultam a liberdade, a autonomia e a vida. Aquilo a que chamamos civilização, tem vindo a apurar regras expressas no Direito, garantes desses princípios, cuja coexistência em regra é possível mas que num caso ou outro entram em conflito. A moral relativista defendida por alguns, não aceita esses princípios como valores absolutos mas condiciona-os ao que mais favorece determinadas circunstâncias. Por exemplo, considerar uma gravidez inoportuna num determinado momento, legitima para alguns o sacrifício da uma vida em formação em nome do primado da liberdade sobre a vida. No caso da eutanásia, defende-se o primado da autonomia sobre a vida. Em ambos os casos, o valor da vida como bem supremo é relativizado e secundarizado. No caso do aborto – pudicamente chamado IVG – o chamado direito inalienável à decisão autónoma não pode sequer ser invocado pelo simples facto de que a vítima não pode manifestar a sua vontade. Claro que não se pode olhar para nenhum destes aspectos de forma simplista pois o dramatismo das circunstâncias pode invocar a compaixão em relação a um ato que nem por ser socialmente impune, deixa de ser intrinsecamente mau.

O vazio, a solidão, a ausência de saídas com ou sem dor e sofrimento físico são por vezes excruciantes e levam pessoas ao desespero e ao suicídio. Também a depressão profunda o pode fazer e esta tem em muitos casos solução terapêutica.  Em nenhuma situação a morte é solução. Desde sempre o Homem se tem interrogado sobre o mistério da existência. Provavelmente nunca saberemos responder à eterna questão: – de onde vimos, para onde vamos? – e não haverá provavelmente uma resposta fora de uma visão transcendental da existência humana. O início e o fim da vida humana permanece um mistério. Simplesmente existimos. Simplesmente somos. Não donos mas autores e administradores duma vida que está. O sofrimento é parte da nossa existência. Como a alegria e o prazer. A medida do sofrimento é o modo como convivemos com ele. Como o deixamos coabitar e interferir no nosso espaço. É possível viver o sofrimento de cabeça erguida, com altivez e nobreza, sobrepondo-lhe a coragem de existir. Existe em muitas pessoas uma profunda dignidade na atitude perante o sofrimento. Invocar a morte como solução é desrespeitar de forma vil a dignidade dos que sofrem. A morte é uma derrota. A morte é uma desistência. Morre quem deixa de lutar.

Nem sempre A Vida Humana foi entendida como um direito. Durante longos séculos de escuridão, os opressores dispunham da vida dos oprimidos, os dominadores da dos dominados, os senhores da dos escravos. O fim da escravatura marca a entrada progressiva num novo mundo de iguais em direitos a caminho da utopia de um mundo de iguais em oportunidades. O reconhecimento do direito à vida como um dos pilares fundadores da Carta dos Direitos Humanos é o culminar de um longo processo de maturação civilizacional que por fim coloca o homem como medida de todas as coisas, como já proclamara Protágoras.

Como parceiros e cúmplices duma mesma humanidade, como habitantes duma mesma cidade, como seres dotados de razão e identidade, de vontade e livre arbítrio, a dignidade inerente à nossa condição de Homens deve exercitar a solidariedade e a compaixão. Perante a solidão, o desespero, o abandono a angústia, a revolta, a dor temos - todos - que saber encontrar as respostas para apoio aos mais fragilizados, como verdadeira comunidade de iguais. Mais que sofrimento intolerável existe tantas vezes intolerância ao sofrimento sobretudo perante a incapacidade da comunidade em enquadrar os que sofrem. A evolução da ciência médica foi mais rápida que a evolução da sociedade mas é a capacidade para enquadrar os diferentes, os mais frágeis e os mais dependentes, o grande desafio civilizacional que se transporta para o futuro. Do mesmo modo que o Direito à Vida constituiu porventura o maior avanço civilizacional de toda a história da humanidade, a invocação da morte, seja sob que pretexto for, mesmo que com a bondade aparente da compaixão ou da justiça, representa um tremendo retrocesso civilizacional que abre o caminho ao regresso a novas formas de barbárie.

 

Médico, Presidente-eleito da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa