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Guilherme d'Oliveira Martins
O paradoxo andante…

«Ao lermos Chesterton, somos dominados por uma extraordinária sensação de felicidade» - diz Alberto Manguel, escritor argentino, que hoje dirige a Biblioteca Nacional de Buenos Aires. «A sua prosa é o oposto da prosa académica: é rejubilante. As palavras ressaltam e desencadeiam faíscas entre si, como se um brinquedo de corda ganhasse vida de repente, fazendo girar e disparar todos os botões do bom senso, o mais surpreendente dos prodígios». O Natal é normalmente oportunidade para falar de livros, e para fazer listas de lembranças literárias. E que é um livro senão o brinquedo que ganha mesmo vida, independentemente de qualquer ilusão? O autor que hoje escolhemos revela-nos, na sua atitude e na sua escrita, como a época natalícia merece ser lembrada para além da sofreguidão consumista e da superficialidade… E simbolizamos nesta escrita as luzes de várias cores que fazem a magia do presépio. No essencial, esse cintilar é tudo menos um passageiro adereço de uma festividade chique. Por isso, o livro que aconselhamos é um belo conjunto de textos da autoria do grande escritor inglês Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) - «Ficar na Cama e Outros Ensaios» (Relógio d’Água, 2016).

Em cada momento da leitura destes textos, o que sentimos é a necessidade de ver o outro lado de nós mesmos, que são os outros… Admirável cultor do paradoxo e do non-sense, enquanto verdadeiro revelador do bom senso, o escritor inglês, convertido ao catolicismo em 1922, presenteia-nos com uma reflexão, brilhante e multifacetada, e com exercícios notáveis em que procura compreender o lugar de cada um, a capacidade de entender o mistério, a importância de Deus e da transcendência, da fé e da razão, do amor e da compreensão, tudo a partir de uma reflexão generosa e digna de ser vivida, com alegria e disponibilidade. Daí que Alberto Manguel fale de sensação de felicidade, não como uma alegria momentânea e postiça, mas como um júbilo autêntico, ditado pelas Bem-aventuranças ou pelo encontro na estrada de Damasco… E assim Jorge Luís Borges salientou o brilho e a magia da escrita, mas também a admirável modéstia e cortesia do escritor. Este livro faz parte de uma bibliografia apaixonante, em que encontramos «Ortodoxia» (1908) (um exercício desarmante de fé e de esperança), as biografias de S. Francisco de Assis (1923) e de S. Tomás de Aquino (1933), o romance «O Homem que era Quinta-Feira» (1908) e as peripécias policiais do pequeno e rotundo Padre Brown (1911-12), um verdadeiro monumento de inteligência e ironia, que supera em subtileza Poe e Conan Doyle. «Se os policiais são lidos com maior exuberância do que os guias dos caminhos-de-ferro, será certamente porque encerram neles mais dotes artísticos» (p. 273)… E o caso do Padre Brown (que Evelyn Waugh invoca num dos serões de Brideshead) significa a descoberta dos limites e a recusa do puro relativismo ou do absolutismo, que corresponde a uma verdadeira investigação policial, em que a busca da verdade está sempre presente por definição. 

A cada passo, na obra de Chesterton, encontramos a ilustração de uma fé aberta e disponível, capaz de remover montanhas, não pela sisudez, mas pela alegria, pela proximidade e pela consciência dos limites. E sobre S. Francisco de Assis, que criou a representação do presépio, como invocação perene e permanente da presença de Jesus Cristo, o escritor inglês diz-nos: «Ele representa o momento em que a humildade acaba enfim por se tornar venturosa, precisamente porque se tornou também rejubilante» (p. 352). Não se pense, porém, que é o lado fácil das coisas que está presente no presépio. Por isso, Chesterton considera o Livro de Job como fundamental no Antigo Testamento. «A mais importante das belezas de ordem intelectual do Livro de Job refere-se ao facto de estar presente em todo o texto uma preocupação vincada de conhecer a realidade» (p. 170). Tantas perguntas fazemos acerca de Deus. E a história do presépio começa exatamente aí – nas portas que se fecham. «Os enigmas de Deus são mais satisfatórios que as soluções do homem» (p. 173)… Eis por que razão o presépio e as suas luzes não são um apelo simples. E o exemplo de Job não pode deixar de ser invocado, na fuga para o Egipto ou mesmo na saída dos Magos, sem voltarem para junto de Herodes, regressando «à sua terra por outro caminho» (Mt., 2, 12).

E se, desde o início, falamos do entusiasmo de Chesterton pelos paradoxos, lembramos que ele nos recorda que, enquanto nação, os britânicos foram buscar as suas «ideias a romances, a peças de teatro e a enredos poéticos, muito mais do que a manuais de economia ou mesmo a livros mercantis. Esse tipo de ficção encontra-se naturalmente pejado de paradoxos, ou, noutras palavras, cheio de surpresas. O único propósito de um conto de fadas é contar como um tolo foi agraciado por acidente por uma sorte súbita e inesperada» (pp. 48-49). Ora o que o nosso escritor pretende deixar claro é que mais do que nos contos de fadas estamos empenhados em considerar os paradoxos como caminhos para entendermos a Verdade e a Vida onde menos se espera…