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Guilherme d'Oliveira Martins
Surgirão muitos falsos profetas…

O Papa Francisco, na mensagem para a Quaresma de 2018, invoca uma passagem de S. Mateus: «Surgirão muitos falsos profetas que enganarão a muitos. E por se multiplicar a iniquidade resfriará a caridade da maioria; mas aquele que se mantiver firme até a fim será salvo» (Mt 24, 11-13). A afirmação está no discurso do fim dos tempos, pronunciado no Monte das Oliveiras, onde começou a paixão de Cristo. O tema é atualíssimo. Estamos diante de um alerta profético que vale para todas as gerações. Os falsos profetas estão em toda a parte, são encantadores de serpentes ou charlatães. E o Papa afirma ser «preciso aprender a não se deter no imediato, no superficial, mas reconhecer o que deixa dentro de nós um rasto bom e mais duradouro, porque vem de Deus e visa verdadeiramente o nosso bem». Quando hoje nos deparamos com o populismo e a demagogia, é disto mesmo que se trata. E o Papa Francisco lembra ainda o seguinte: «Na Divina Comédia, ao descrever o Inferno, Dante Alighieri imagina o diabo sentado num trono de gelo; habita no gelo do amor sufocado. Interroguemo-nos então: Como se resfria o amor em nós? Quais são os sinais indicadores de que o amor corre o risco de se apagar em nós? O que apaga o amor é, antes de mais nada, a ganância do dinheiro, “raiz de todos os males” (1 Tm 6,10); depois dela, vem a recusa de Deus e, consequentemente, de encontrar consolação n’Ele, preferindo a nossa desolação ao conforto da sua Palavra e dos Sacramentos». Assim, temos de ter bem presente a interrogação sobre quem é o nosso próximo.

A noção de caridade como cuidado dos outros tem de estar presente. Longe da ideia pobre de uma caridade formalista ou de um modo de aliviarmos a má consciência, impõe-se a atenção, o cuidado, a entrega aos outros. E o Papa é muito claro: «Como gostaria que a esmola se tornasse um verdadeiro estilo de vida para todos! Como gostaria que, como cristãos, seguíssemos o exemplo dos Apóstolos e víssemos, na possibilidade de partilhar com os outros os nossos bens, um testemunho concreto da comunhão que vivemos na Igreja». Não falamos da esmola que esquece o amor e a justiça – mas de algo que signifique uma verdadeira partilha. E os cristãos que são chamados às responsabilidades políticas têm de ter consciência de que a caridade exige medidas concretas de justiça distributiva. Giorgio La Pira, síndaco de Florença nos anos cinquenta e sessenta, cujo processo de beatificação está muito adiantado, considerou, por isso, que não bastaria haver gestos que não visassem a raiz das injustiças. De boas intenções está o inferno cheio. Como afirmam os princípios elementares da cooperação para o desenvolvimento não basta dar um peixe a quem tem fome, é necessário atribuir-lhe uma cana de pesca e dar-lhe a formação para poder usufruir do melhor modo desse bem. 

O início da Quaresma leva-nos a refletir sobre o sentido atual de um tempo de especial dedicação a Deus. E de que falamos? Da séria experiência de recusa da idolatria e dos bezerros de ouro – e da prevalência dos mais sérios valores do amor, da justiça e da paz. É do Sermão das Bem-Aventuranças que, no fundo, estamos a tratar. Ponto a ponto, é daí que temos de partir, uma vez que os quarenta dias de jejum de Jesus Cristo representam um apelo sério a que os valores da justiça e da gratuitidade se articulem na nossa vida quotidiana. Aí está a dificuldade suprema dos tempos de hoje. E se as tecnologias estão na ordem do dia, também a manipulação das nossas consciências e vontades o está. A técnica tem de se tornar humana, tem de estar ao serviço das pessoas concretas. Como é estranho ver tanta gente agarrada ao seu aparelho eletrónico, absorta, indiferente e desatenta ao que está à sua volta. A dependência da tecnologia torna-se doentia. Fala-se de inteligência artificial, confundindo-a com um sucedâneo da consciência humana – e não como um fator de desenvolvimento humano. E daí que os debates sobre a sociedade se devam fazer em nome de um desenvolvimento apto a ajudar a humanidade e não como uma ameaça (ao emprego, à convivialidade, à confiança). Por ironia, as redes sociais tornaram-se fechadas e levam ao real esquecimento dos outros. Cada um fala só com o seu grupo. Basta ver o ódio e o lixo que circulam nos comentários das redes digitais. Charlatães e bezerros de ouro, eis o que surge donde menos se espera na sociedade contemporânea. A idolatria e a manipulação aparecem como se o determinismo fosse matando a sociedade humana… O mal não está nas técnicas e nas tecnologias ou no progresso das ciências, mas sim na tentação de simplificar as coisas e de recusar o carácter instrumental das inovações relativamente à dignidade humana. Os falsos profetas enganarão a muitos. A iniquidade matará a dignidade do respeito mútuo e do amor. E no entanto, quantos progressos extraordinários podem melhorar a humanidade. Eis porque o programa das bem-aventuranças está mais atual que nunca.