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Isilda Pegado
De quem és?

1 – Com o avançar da idade, alimentamos uma fila imensa de amigos, colegas, conhecidos ou vizinhos que muito nos preenche e encanta. É bom ver o Xico, ou a Joana, e perguntar-lhe “o que tens feito?”. Ouvir histórias reais, contadas na primeira pessoa. Ou reviver.

2 – Mas depois destes nossos amigos, vizinhos, etc., vêm os filhos e netos deles. Damos por nós, tantas vezes, a “tirar-lhes a pinta”. “Filho de quem? É mesmo da família…”. Esta relação com a ascendência identifica a família, o grupo, a forma e até o lugar de vida, de cada um. E, nesse sentido o próprio se sente protegido e envolto numa história que lhe pertence, e que também ele constrói com a sua vida.

3 – Por isso, a mesma realidade é vista de dois prismas. O primeiro, de quem está de fora e pergunta – «de quem és? Como te chamas? És dos “Silvas” ou és dos “Sousas”?» e, ao receber a resposta, sente o conforto da identidade do outro que se cruza com o seu campo de conhecimento e referências.

Esta forma de estar também pode ter outra leitura - só as “boas famílias” perguntam os apelidos. Não é verdade! Hoje os círculos de amizades e relacionamentos não se fazem por área geográfica. Mas até há 40 anos tais perguntas eram frequentes nas aldeias, nas vilas ou nos bairros das cidades. E não era snobismo. Hoje, os círculos de amizades fazem-se por outros critérios – profissionais, clubistas, religiosos, universidades e colégios ou escolas, etc., etc.

E, como dizíamos acima, esta identificação que vai além do nome próprio dá amplitude à relação que se estabelece de imediato. Dá conforto e estima àqueles que reconhecem e acolhem.

4 – E, o segundo prisma, é recebido pelo indivíduo que é identificado. “Bem sei, o teu avô trabalhou com o meu tio Xico…” “E a tua mãe andou na escola com a minha irmã mais velha, eram grandes amigas”. A conversa flui, no encontro de nomes e experiências passadas, que ali são revividas ou descobertas. É uma forma de ser acolhido, “és dos nossos”, ou “ainda não”. Abrem-se portas e, em especial, a do coração.

5 – Muito do que acabamos de descrever acontece quando os filhos começam a trazer a nossa casa novos amigos ou amigas.  Aí é o teste… Por vezes temos receio de perguntar “quem são os teus pais?”. Ou, os filhos dizem-nos “Porquê aquela pergunta?”. Este receio ou esta “censura” são fruto da mentalidade dominante, fruto de uma atitude socialmente promovida em prol da solidão e do individualismo.

6 – Quem não recorda a cantiga:

“Tu pertences a ti

Não és de ninguém”.

“Quando alguém nasce

Nasce selvagem

Não é de ninguém”. (Delfins).

Que tamanha falsidade…

7 – A família não é uma construção social que eu uso e deito fora. A família brota do nosso sangue, do nosso coração. A família define uma identidade. A família é fonte de comunicação com o mundo que nos rodeia “De quem és?”, “Quem são os teus?”.

8 – Devo confessar que já reformulei muitas vezes esta pergunta para não parecer “intrometida”, “tiazoca” (etc.). Aos “olhos do mundo” não se deve perguntar. Pode ser censurado aquele que pergunta. Mas, quando se faz a pergunta do outro lado há um sorriso e uma vontade de responder. O coração tem a resposta. Numa relação sã a pergunta é fonte de interesse e estima.

9 – Porém, esta é apenas uma pequena dimensão e consequência de tal “cultura” que nega o próprio homem, nega a sua identidade, a sua natureza. Este tipo de ideologia que entrou na sociedade ocidental, promove a solidão do homem. Nega a solidariedade primeira que nasce da família. Por isso, se admite já a discussão sobre o suicídio assistido/eutanásia. A sociedade é uma construção que depende de todas as peças.

Nascemos numa família, pertencemos a uma família, geração, região, País e em tantas outras realidades. Morremos numa família.

De quem és?