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Guilherme d'Oliveira Martins
Alegria no Espírito Santo…

Chegamos ao fim do período pascal – momento fundamental das celebrações do ano litúrgico. Depois da Ascensão, chegamos solenemente ao Pentecostes. E é bom recordar as tradições antigas que chegaram até nós sobre este tempo. Uma leitora de Alenquer recordou-me amavelmente que, para além dos Açores e do Brasil (ou da Festa dos Tabuleiros de Tomar), não poderia esquecer-se as importantes festividades desse município. Em boa hora isso me foi recordado, o que apenas confirma que apesar da redução dessas festividades no continente a partir do século XVI, a tradição não desapareceu, estando a renascer. O franciscanismo contribuiu decisivamente, depois do século XIII, entre nós, sob a influência da Rainha Santa Isabel, para a afirmação especial da Graça e da alegria. Enquanto a quinta-feira da Ascensão ocorre quarenta dias depois da Páscoa, o Pentecostes tem lugar nos cinquenta dias, às sete semanas. Popularmente chamada de Quinta-feira da Espiga, a festa da Ascensão é tida como “o dia mais santo do ano”. Era tradicional colher-se um ramo de espigas de trigo, sempre em número ímpar, um pequeno tronco de oliveira, papoilas, margaridas e varas de videira. Este ramo era depois colocado atrás da porta de casa, para que nela houvesse pão, azeite, saúde e alegria durante todo o ano. Além disso, ia-se aos campos para celebrar as colheitas e para usufruir da Primavera, subindo-se a um monte, em recordação da Ascensão de Jesus Cristo e das Bem-aventuranças. Assim muitos municípios portugueses adotaram esse dia como feriado municipal.

Pelo Pentecostes, em lógica sequência, tinham lugar as antigas festas imperiais do Espírito Santo, porventura das maiores da nossa religiosidade, que atraíam a presença da Corte e de muitos forasteiros com iguarias extraordinárias. As festas, restauradas em muitas terras de Portugal, já no século XX, voltaram a ser preparadas longamente pelas irmandades e seus mordomos, tendo como referência os Impérios, correspondendo a uma antecipação ou prefiguração do tempo libertador do Espírito Santo - a idade da Graça redentora, onde não haveria necessidade de leis ou instituições disciplinadoras da fé, já que esta seria universal e baseada diretamente na inspiração divina - sendo distribuído a todos, sem exceção, o bodo, constituído por uma refeição rica, partilhada irmãmente. Neste espírito, o Papa Francisco na Exortação Apostólica «Gaudete et Exultate» invoca especialmente o espírito de comunidade, afirmando: “Lembremo-nos como Jesus convidava os seus discípulos a prestarem atenção aos pormenores: - o pequeno pormenor do vinho que estava a acabar numa festa; - o pequeno pormenor de uma ovelha que faltava; - o pequeno pormenor da viúva que ofereceu as duas moedinhas que tinha; - o pequeno pormenor de ter azeite de reserva para as lâmpadas, caso o noivo se demore; o pequeno pormenor de pedir aos discípulos que vissem quantos pães tinham; - o pequeno pormenor de ter a fogueira acesa e um peixe na grelha, enquanto esperava os discípulos ao amanhecer” (144). Nesta passagem, a atenção e o cuidado emergem como essenciais. E o Papa recorda Santa Teresa de Lisieux, quando esta fala na música harmoniosa de uma festa, que não pode fazer esquecer os gemidos queixosos de uma doente…

A atenção exige que compreendamos a humanidade no seu todo. Por outro lado, põe-nos de sobreaviso relativamente ao imediatismo, ao individualismo consumista “que acaba por nos isolar na busca de bem-estar à margem dos outros”… E não podemos deixar de ouvir: “Que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti” (Jo.,17-21). Mas não significa isto “um espírito retraído, tristonho, amargo, melancólico ou um perfil sumido, sem energia. O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança. Ser cristão é “alegria no Espírito Santo” (Rm, 14,17), porque, “do amor de caridade, segue-se necessariamente a alegria”, como afirmou S. Tomás de Aquino (cf. 122).

A leitura de «Elogio da Sede» do Padre José Tolentino Mendonça (Quetzal, 2018) permite-nos compreender melhor esta alegria a partir da sede como “bem-aventurança que nos salva”. No fundo, “Deus ama a vida e não desiste dela”. De que vida nos fala? Do quotidiano inesperado, em que podemos descobrir o outro que nos procura. Nos caminhos insondáveis temos de ser aprendizes do espanto. “O que nos salva é um excesso de amor, uma dádiva que vai para lá de todas as medidas”. Não, não estamos saciados – estamos sim cientes de uma sede que não se satisfaz imediatamente. S. Paulo di-lo melhor que ninguém. A fé e a esperança passam. O amor e o cuidado ficam – e a sede é o desejo desse dia em que poderemos ver face a face… “Porque Deus não desiste de dizer a toda a vida – à nossa vida – que ela é querida e bem-aventurada. Essa é a sede de Deus”. E que melhor invocação do Pentecostes senão esta ideia plena de entusiasmo e de responsabilidade?