
Em 2006, a gestão da Casa do Gaiato de Santo Antão do Tojal, em Loures, passou para o Patriarcado de Lisboa. Doze anos depois – e no ano em que a instituição assinala o 70º aniversário –, foi assinado o primeiro acordo de cooperação com a Segurança Social. Um acordo que “credibiliza e viabiliza a casa”, na opinião da diretora geral da instituição, Maria Teresa Antunes. “Deus está, certamente, na Casa do Gaiato”, garante.
A Casa do Gaiato de Lisboa assinou, no passado dia 7 de junho, o seu primeiro acordo com a Segurança Social. Que acordo é este e o que significa para a casa?
Este acordo visa o acolhimento residencial, portanto o lar de infância e juventude, que é a resposta de base desta casa de rapazes. É o acordo para a Casa Mãe, o edificado onde funciona esta resposta, que tem uma capacidade para 23 rapazes, sendo que a Segurança Social nos vai financiar 18 – no fundo, acaba por financiar 60% do funcionamento desta resposta, daí a necessidade de continuar a haver apoios e donativos. É um acordo assinado por três anos, renováveis, desde que esteja tudo a correr bem, uma vez que neste acordo de parceria com o Instituto da Segurança Social haverá também acompanhamento técnico.
De referir que todos os rapazes que temos na Casa do Gaiato de Lisboa, desde que o Patriarcado assumiu a casa, em 2006, entraram por via dos tribunais ou das comissões de proteção de crianças e jovens. Esta casa sempre recebeu rapazes porque é uma resposta muito necessária em Lisboa. As negociações para este primeiro acordo iniciaram-se em 2015, com o projeto de refundação, e acredito que o acordo viabiliza a casa.
Haverá mais acordos com a Segurança Social?
Vamos ter mais dois acordos, que serão assinados brevemente e que são também muito importantes para a casa. Um deles é para o apartamento de autonomização. Existem poucos, mas hoje a lei prevê os apartamentos de autonomização, que são a melhor resposta para aqueles casos de rapazes que estão a ser muito resilientes no acolhimento residencial e que precisam de uma oportunidade muito semelhante àquilo que procuramos proporcionar aos nossos filhos quando vão estudar para fora: estarem inseridos na comunidade, terem um ‘pocket money’ (dinheiro em caixa) para a gestão da casa, aprenderem todas as rotinas, aprenderem a cozinhar, a tratar da roupa, a controlar os consumos de água, da luz, da internet… no fundo, todas aquelas coisas que nós, um dia, também aprendemos quando nos tornámos independentes.
Este apartamento fica situado no centro de Loures e tem capacidade para cinco rapazes, a morarem independentes: um está na universidade, outro prepara-se para entrar, têm os seus part-times e são lutadores pela vida. São casos muito compensadores, mas que pressupõem um acompanhamento nosso, de retaguarda, para acompanhar os projetos de vida e ir ensinando as competências necessárias. Hoje a lei prevê que, desde que os rapazes estejam empenhados no projeto de vida relacionado com a sua formação e preparação para a autonomia plena, possam estar até aos 25 anos em vez dos 21. O marco dos 21 anos era uma coisa quase cruel.
Este acordo com a Segurança Social é um acordo atípico, e deve ser assinado brevemente, entrando em vigor a 1 setembro. Curiosamente, este projeto tem a parceria de uma Igreja não Católica, no caso a Associação Igreja Maná, que nos ajuda imenso. Portanto, a resposta já está a funcionar desde 2016, não temos ainda é o apoio do Estado.
E sobre o terceiro acordo, o que pode adiantar?
Uma das coisas que nós preservámos, e queremos preservar, do padre Américo é ir às maiores necessidades e aos maiores gritos sociais. A deficiência, neste momento, no concelho de Loures é, digamos, a urgência, por isso o nosso projeto de refundação, iniciado em 2014, pensou em respostas que eram obrigatórias serem criadas, como uma residência autónoma. O projeto de refundação partiu da base real que eram os 62 rapazes existentes na altura e, olhando bem para eles, para o perfil de cada um e delineando um projeto de vida, tínhamos na altura sete com deficiência – sendo dois deles mais profundos. Uma antiga camarata foi convertida numa residência autónoma, que tem uma cozinha, uma lavandaria, cinco quartos, uma sala de estar – é uma casa com excelentes condições. Estão lá cinco rapazes, todos eles com necessidades especiais, em que o mais velho tem 36 anos e o mais novo 25. Eles estão a viver com alguma autonomia, com a nossa retaguarda e este acordo que vamos assinar vai permitir ter lá um ajudante de ação educativa, que lhes vai ensinar aquilo que trabalhamos com os do apartamento de autonomia, só que ao seu ritmo. Tenho de referir que à volta da Casa do Gaiato de Lisboa há um parque de empresas que foi sensível à questão de os integrar e temos atualmente três rapazes com necessidades especiais empregados, cujos trabalhos têm estado a correr bem.
Com estes três acordos com a Segurança Social, vai ser possível criar projetos novos?
Estes acordos dão-nos mais segurança para outros projetos que já estão em curso, projetos não financiados, e também para outros que queremos investir. Para a deficiência mais profunda, temos um projeto de arquitetura aprovado para um lar residencial para 23 utentes. Com a residência autónoma e este novo lar residencial, iremos ter tantos rapazes com deficiência cognitiva como crianças e jovens em perigo.
Por outro lado, nós entrámos, por pedido da Câmara Municipal de Loures – que tem dois bairros com muita população infantil e juvenil pobre –, no CLDS (Contrato Local de Desenvolvimento Social). Como a casa no verão é ‘invadida’ por miúdos que querem ir à piscina, surgiu-nos a necessidade de pensar em alguma resposta para estes rapazes. Não queríamos mandá-los embora, apesar de ser um risco eles estarem na piscina sem vigilância e andarem por aí à ‘solta’, então começámos, de uma forma ainda meio informal, um trabalho com a junta de freguesia e também um projeto com a Universidade Católica, o ‘Make it Possible’. No verão, vêm para cá estudantes universitários fazer seis semanas de férias com estes rapazes. É um projeto que funciona dentro da casa e também com algumas saídas, à praia, e acredito que este financiamento nos vai abrir a possibilidade de dar mais respostas à população local, de crianças e jovens.
E finalmente, na atenção aos problemas e necessidades mais prementes do nosso tempo, abrimos, em 2016, a Casa Mundo.
Que projeto é esse da Casa Mundo?
É um projeto que recebe mães vindas dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) que vêm com os seus filhos que precisam de tratamento médico, e também refugiadas, acompanhadas dos seus filhos. Nós estamos na PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados e recebemos somente famílias monoparentais femininas e as suas crianças. O protocolo com a PAR tem um financiamento, que suporta uma parte da Casa Mundo, mas com as mães dos PALOP não temos apoio nenhum. Nesse sentido, procuramos dar uma resposta que sempre foi a resposta da Casa do Gaiato de Lisboa: um serviço gratuito aos que mais precisam.
Nestes anos, a Casa do Gaiato de Lisboa tem tido donativos e sentido o apoio do Patriarcado de Lisboa?
Certo dia tivemos aqui uma auditoria e a auditora disse-nos: “Deus está, certamente, na Casa do Gaiato”. Porque é verdade! Tivemos pequenas heranças que nos permitiram investir na melhoria das condições da casa, em termos das infraestruturas e da própria qualidade das respostas, e temos donativos que são muitas vezes surpreendentes. Por exemplo, ao contrário de outros anos, este ano ainda não precisámos da ajuda do Patriarcado ou da Cáritas e as contas têm estado sempre positivas e com tudo pago. Claramente: Deus existe nesta casa, sem dúvida, e providencia.
O investimento feito acabou, por exemplo, com o conceito de ‘camaratas’. Todos os edifícios foram adaptados às normas que nos eram exigidas, de acessibilidades, projetos contra risco de incêndio, o HCCP – de segurança alimentar, tudo isso foi feito com donativos que surgiram. O Patriarcado, naturalmente, ajudou sempre nas alturas de crise e nunca nos faltou nada. O senhor D. Manuel apoiou este processo todo e foi a base de tudo isto acontecer.
Casa do Gaiato de Lisboa: que casa é esta?
É uma casa muito especial, mesmo. É uma casa que acolhe e que cuida. Penso que tem tido sempre, desde o padre Américo, esse propósito. Ao longo de 70 anos, os tempos mudam, a sociedade muda, os modelos educativos dos nossos pais não foram iguais aos nossos e aos dos nossos filhos, em especial agora, com o fenómeno das redes sociais, todo o paradigma mudou, mas penso que tem sido uma casa que cuida dos que mais precisam, sempre.
É também uma casa onde vemos sempre a graça de as coisas surgirem, de surgir o pão para cada dia. Esta é a verdade! Surgem pedidos graves, mas também surge muita boa vontade e generosidade. Não é uma casa de rapazes para rapazes, é uma casa de família. O nosso lema da refundação é: ‘Uma casa de Família, para as famílias, pelas famílias’. É isso que procuramos que seja. Incentivamos muito aquilo que, hoje, toda a sociedade precisa – e não só estas franjas e estas periferias: que a base estruturante seja a família.
Quantos utentes tem a Casa do Gaiato de Lisboa, hoje em dia?
Em termos de utentes residentes, entre rapazes e mães com os seus filhos, a casa tem, neste momento, 42, além dos 27 que estão fora e veem cá em atividades de tempos livres, apoio ao estudo ou teatro – o apoio local a crianças e jovens.
No acolhimento residencial, que é a Casa Mãe, com capacidade para 23 rapazes, temos atualmente 17, entre os 14 e os 30 anos, sendo dois com deficiência. A média dos rapazes é de 16-17 anos e o quadro de pessoal afeto diretamente é de 18 pessoas, entre monitores e voluntários. Os quartos têm uma capacidade, no máximo, para três rapazes e é o edifício mais antigo da casa. É um acolhimento onde se tenta ter um modelo tão próximo quanto possível do modelo de família. Estão todos integrados nas escolas públicas da zona, havendo um ou dois a trabalhar porque já terminaram aquilo que era possível, para eles, em termos de projeto de estudo. Para além disto estão quase todos integrados em actividades desportivas, alguns com muito bons resultados nesta área, e tanto quanto possível, em actividades culturais.
Noutro edifício, a residência autónoma tem cinco utentes com necessidades especiais. O lar residencial – que iremos agora iniciar a construção, num edifício aqui da casa – vai receber 23 jovens adultos com necessidades especiais, com deficiência mental grave e ligeira, sobretudo daqui da zona de Loures. Teremos também o centro de atividades ocupacionais (CAO) para 30 utentes, porque não poderemos abrir um sem o outro, para a ocupação da parte do dia. Na Casa Mundo, com seis quartos de acolhimento, temos as mães e suas crianças, sendo atualmente 11 no total. Esta é uma resposta que vamos ampliar por ser francamente muito necessária. Finalmente, situado no exterior da Casa do Gaiato de Lisboa, temos o apartamento de autonomização, onde atualmente estão três rapazes, e iniciaremos no próximo ano lectivo com cinco.
O que me agrada mais nesta casa é que o critério de entrada não é o apoio que vem com determinado utente, mas a urgência da resposta, acompanhada de uma constante providência.
Em termos de futuro, já não muito longínquo, aquilo que estamos a prever, em termos de números, são cerca de 90 utentes residentes, numa lógica de cada edifício uma resposta, com uma população diferente, com um projeto de intervenção diferente e equipas que são também diferentes – claro que teremos técnicos que ficarão distribuídos por mais do que uma resposta. Atualmente, temos 23 funcionários – sendo sete deles antigos gaiatos –, mas vamos ter que reforçar o quadro de pessoal, por via dos acordos.
É possível um antigo gaiato regressar à instituição como utente?
Este é outro aspeto que me agrada muito nesta casa, que é a possibilidade de um utente já autonomizado, numa eventual crise de vida, poder recorrer à casa e ser apoiado. É o projeto ‘Porta Aberta’ e temos tido alguns casos desses: houve um que foi encontrado numa rede de escravatura em Espanha, houve outro que veio da Guiné dar um rim ao irmão, temos outro rapaz que saiu, e tinha uma vida extraordinária, mas a companheira faleceu e ele entrou numa ‘queda de vida’ e foi parar à rua. Este projeto funciona também numa zona autónoma dentro da Quinta.
O que é mais difícil, e desafiante, na relação com os rapazes e nesta sua missão na Casa do Gaiato de Lisboa?
O que é muito difícil nesta casa é a herança que eles trazem do antigo modelo, ainda dos ‘chefes’. A pedagogia entre eles, como eram os chefes que os controlavam, era muito na base da violência e dos modelos opressores. Foi muito difícil aqueles tempos de ensinar e educar para justiça e para o direito. Ensinar que bater é um crime público e que, se for preciso, chamamos a polícia. Bater, roubar, eram hábitos muito instalados.
Por outro lado, a média de idades da nossa população residente é de 15-16 anos, e as vivências destruturantes que todos eles tiveram é sempre um desafio tremendo. Nós não temos praticamente órfãos entre os rapazes. São, isso sim, rapazes cujos pais não têm condições, ou que não se interessam. Há também casos de maus tratos dos pais e há casos de mãe sozinhas, que é, quase sempre uma situação de grande fragilidade, sobretudo quando aliada à pobreza. Lembro-me de um caso concreto, de um rapaz com 11-12 anos, que está no acolhimento residencial, em que a mãe já não o conseguia controlar. Daí ganhar muita relevância o projeto de acolher mães com crianças, pois é por demais injusto o afastamento mãe-filho apenas porque se é pobre.
Nós procuramos que haja relação com as famílias. Sempre que possível, sentamos à mesa connosco, numa reunião, os pais. Muitas vezes isso não é possível por desinteresse sobretudo dos pais, porque da parte da criança há sempre afetividade. No seu íntimo, há sempre esse desejo de encontro.
A Casa da Gaiato de Lisboa pode receber grupos de fora, católicos ou não?
Temos comunidades paroquiais, escuteiros ou grupo de catequese que vêm cá fazer retiros ‘low cost’. Tem sido muito importante para nós, porque dão uma pequena comparticipação, com o pagamento de uma diária ou simplesmente a oferta de um peditório, depende sempre dos grupos, se podem pagar ou não. Mas não vêm apenas grupos da Igreja. Há também grupos de desporto que querem vir aqui fazer um estágio, ou empresas que querem organizar uma festa ou eventos de ‘team building’, há multinacionais que fazem cá reuniões com gerentes de várias lojas.
Para nós, tem sido muito importante, em especial neste último ano em que criámos um espaço bonito e acolhedor, com o apoio de um hotel que nos cedeu equipamentos para esse efeito, e fizemos um espaço que comporta cerca de 30 dormidas.
A Casa do Gaiato de Lisboa celebrou 70 anos, no passado dia 4 de janeiro. Que significado tem esta data?
Setenta anos é uma vida inteira! É uma data, é um número redondo, que teve de ser assinalado, tal como assinalamos a passagem da instituição para o Patriarcado, há 12 anos, mas há 70 anos houve a chegada do fundador. Em janeiro fizemos uma festa no palácio, que é o local onde o padre Américo chegou, em 1948, com três rapazes. Nessa festa, para preparar a minha intervenção sobre o que esta casa representa, fui à contagem dos processos e vi que já vai em mais de 1100 vidas que passaram por aqui, nestes 70 anos. Isto é relevante, sem dúvida!
Aquando do projeto de refundação, há quase quatro anos, fizemos também a contagem dos rapazes que foram bem-sucedidos e achamos que anda à volta dos 85-90% de sucesso de integração. Significa que esta casa, gratuitamente, a custo zero para o Estado, deu à sociedade todos estes contribuintes, estes pais de família, muita gente válida à sociedade.
Em 70 anos de vida claro que aconteceram aqui coisas más, mas aconteceram também muitas coisas boas. É uma obra de Deus, sem dúvida.
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Perfil
Maria Teresa Antunes acompanha a Casa do Gaiato de Lisboa praticamente desde o primeiro dia que instituição passou a pertencer ao Patriarcado de Lisboa, em 2006. Psicóloga de formação, Teresa era catequista dos rapazes mais novos a partir de 2008 e, em 2014, passou a ter funções executivas, sendo hoje a diretora geral. “Nos primeiros nove meses do projeto de refundação, iniciado em setembro de 2014, vim à Casa do Gaiato todos os dias. Inevitavelmente, a minha comunidade passou a ser a Casa do Gaiato de Lisboa e deixei de ter disponibilidade para pertencer à Paróquia da Ramada”, refere.
Aos 45 anos, a diretora geral da Casa do Gaiato de Lisboa trabalhou durante muitos anos na área de Tecnologias de Informação em Gestão Recursos Humanos e recorda que, quando D. Manuel Clemente foi nomeado Patriarca, “a casa estava a atravessar uma crise muito grande”. “Houve então duas propostas: ou se fechava a casa ou propunha-se uma refundação completa do modelo. Eu surgi nessa altura, juntamente com a Dra. Catalina Pestana e o Dr. Álvaro Carvalho, a convite do padre Arsénio, e apresentámos ao senhor Patriarca o projeto atual, que passava por aproveitar todos os recursos, não só o edificado como este ambiente bonito e terapêutico que a casa tem, e ajustar àquilo que a lei diz. Muitas vezes, costumava pairar que a lei e a Segurança Social eram coisas más e ameaçadoras, mas a lei na matéria da promoção dos direitos das crianças está bem-feita e visa a proteção”, frisa.