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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
A vitória da vida

No passado dia 11 de Fevereiro, festa de Nossa Senhora de Lourdes, completaram-se doze anos sobre o referendo que, em Portugal, liberalizou a interrupção voluntária da gravidez. Não obstante o empenho de tantos movimentos cívicos, o entusiasmo de tantos jovens, a dedicação de tantos profissionais, os esclarecimentos de tantos cientistas e a coragem de tantos cidadãos, a vida não venceu. Talvez, para todos os que tanto lutaram nessa ocasião pelo direito a nascer, o referendo tenha sido uma derrota. Para os fiéis de há dois mil anos, a morte de Cristo na Cruz também pareceu ser um fracasso quando, na realidade, era o prenúncio de uma vitória definitiva: “se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto” (Jo 12, 24).

O crime do aborto é de especial gravidade por duas principais razões: porque a vítima é uma criança inocente; e porque o acto é protagonizado por quem mais está obrigado a amar esse ser humano.

Tende-se a pensar que, quanto menor for a vítima, mais grave é a respectiva ofensa: bater num homem adulto é certamente menos criminoso do que fazê-lo a uma criança, porque aquele pode, em princípio, defender-se. É também por esta razão que a pedofilia é tão execrável, ao ponto de provocar, por parte de Nosso Senhor, uma das mais graves e severas condenações (Mt 18, 1-6; Lc 17, 1-2). Se o ofendido não é apenas um jovem, mas um recém-nascido e, por isso totalmente indefeso, mais hediondo é, certamente, o crime.

O critério, em virtude do qual a responsabilidade do agressor é inversamente proporcional à capacidade de defesa do ofendido, não se aplica, contudo, quando a vítima é alguém que ainda não nasceu: neste caso, paradoxalmente, o Estado não só não penaliza a sua eliminação como até chega ao extremo de a considerar um ‘direito’ da mulher! Se há uma lei irracional, para além de imoral, é certamente a que despenaliza o aborto, nomeadamente por contradizer o critério da restante legislação penal, que agrava a responsabilidade criminal em função da debilidade da vítima.

Costuma-se dizer que, longe da vista, longe do coração. Talvez seja por esta razão que muitas pessoas, que certamente não são más, consentem no que eufemisticamente denominam como interrupção voluntária da gravidez. Na realidade, não se trata principalmente de interromper um processo biológico da mulher, como é a gravidez, mas de pôr termo, de forma violenta, a uma vida inocente. Mesmo os que aparentam uma certa insensibilidade ética em relação ao crime do aborto, a necessidade que sentem de camuflar este acto, com uma denominação aparentemente inócua, é já um indício de que têm uma relativa consciência da sua gravidade.

O aborto é particularmente grave porque é cometido pela mulher gestante ou, pelo menos, com o seu consentimento. A pessoa mais directamente implicada no processo de gestação daquela nova vida transforma-se na responsável pela sua abrupta eliminação, mesmo quando a geração foi consentida e a criança, em vias de nascer, é saudável. Certamente, nem a violação da mãe, nem a malformação do feto são razões suficientes para proceder à exterminação do nascituro, mas atenuariam a culpa, que é maior quando se trata de alguém que, tendo querido aquele filho, depois contraria essa sua decisão, causando a morte de um ser humano que, embora vivendo no seio materno, tinha já todas as características próprias de uma irrepetível personalidade humana.

É também chocante que a decisão de pôr termo a uma gravidez seja exclusivamente da mulher: o pai da criança não é tido nem achado nesse processo, como se o filho fosse exclusivamente da gestante e esta dele pudesse dispor livremente, como se se tratasse apenas de uma parte do seu corpo. Uma tal discriminação talvez seja inconstitucional, na medida em que não reconhece ao progenitor masculino os direitos que decorrem da sua paternidade, única e exclusivamente por razão do seu sexo e não obstante a sua necessária participação na concepção.          

Há quem culpabilize a Igreja católica por não ter sabido denunciar, a seu tempo, as atrocidades cometidas pelo regime nazi. A verdade histórica é que Pio XII foi um intrépido defensor do povo judeu e o mais aguerrido opositor do regime nacional-socialista alemão, que aliás conhecia bem, por ter vivido bastantes anos, como núncio apostólico, na Alemanha. Mesmo que não se possa aceitar essa calúnia, dela se deve retirar uma importante lição: o silêncio também pode ser culpável. Não basta não fazer o mal, à Igreja pede-se que defenda sempre os mais necessitados, os que não têm voz, como são, na actualidade, os milhões de crianças mortas no ventre materno.  

Nos Estados Unidos da América, aprovou-se agora uma lei que permite o infanticídio à nascença. Mas desse país chegam também sinais de esperança: o seu presidente pretende promulgar legislação pró-vida. Também o eleito presidente do Brasil se declarou favorável à defesa da vida intrauterina. É provável que também a Portugal cheguem esses ventos de mudança, fazendo germinar as sementes generosamente plantadas há doze anos atrás.

Entretanto, milhares de crianças ficaram por nascer, mas a Igreja, pela voz dos seus pastores, dos seus médicos e profissionais da saúde, dos seus juristas e homens de leis, dos seus teólogos e pastores, dos seus jovens e mulheres, não se calou. Não cessou de rezar pelas vítimas e pelos seus algozes, nem de lutar pela implementação do mais elementar de todos os direitos humanos.

Não sabemos quando será, mas sabemos que a vitória é nossa. O importante é não desertar, nem desfalecer nesta luta, não se deixar levar pelo derrotismo dos cobardes, não ceder ao cansaço da luta, nem se deixar envolver pela lógica diabólica do ódio. Somos pela vida, sem ser contra nada nem ninguém. Somos pelo amor, sem odiar nenhuma pessoa. E temos esta certeza: “todo aquele que nasceu de Deus vence o mundo. Este é o poder vitorioso que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5, 4).