Entrevistas |
Sandra Chaves Costa, coordenadora do GEscuta
“A escuta quebra a solidão”
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É um projeto que nasce da necessidade das pessoas de serem escutadas. O Gabinete de Escuta – GEscuta foi “apadrinhado pelo Patriarcado de Lisboa desde a fundação” e Sandra Chaves Costa, coordenadora do projeto, sublinha a “vontade de apoiar qualquer pessoa, perante qualquer situação de crise ou sofrimento”.

 

A escuta tornou-se hoje uma verdadeira necessidade social?

Vivemos, na atualidade, numa época de tecnologia. Através das redes sociais, facilmente estamos ligados a centenas de amigos, para não dizer milhares, e apesar de estarmos cada vez mais rodeados de pessoas, sentimo-nos cada vez mais sós. Quantos de nós estamos ligados a 500 pessoas através do Facebook e, quando precisamos de desabafar, não temos ninguém a quem recorrer, ninguém que nos ouça. Vivemos numa época da apologética da felicidade, em que as tristezas e as angústias não têm espaço, não têm lugar, porque não são atraentes. A realidade é essa. Portanto, ter alguém que nos escute é ter alguém que nos devolva o nosso devido protagonismo, numa relação a dois, que valide a nossa existência. No fundo, que nos devolva a nossa humanidade com tudo aquilo que ela tem, luz e também sombra. O ritmo frenético da nossa sociedade e a autorreferencialidade dos nossos dias anestesiam-nos e como que promovem uma apatia com que lidamos com o sofrimento daqueles que nos rodeiam. Não posso esquecer, e foi algo que me marcou, há cerca de dois anos, quando estava em Roma, a ouvir o Papa Francisco, no Angelus, que dizia: “Hoje andamos totalmente ocupados e deixamos de ter a capacidade de ouvir”.  E pedíamos que aprendêssemos a ouvir e a dedicar tempo à escuta, porque, segundo ele, na escuta está a raiz da paz. Basta olhar para a vulnerabilidade e para a fragilidade que nos rodeia para perceber que a escuta é uma autêntica necessidade social. A escuta quebra a solidão, a exclusão, e satisfaz a nossa necessidade de nos sentirmos e reconhecermo-nos vivos. Portanto, permitir a alguém que está numa situação de crise que desabafe, num clima que seja de compreensão e de ausência de julgamento de juízo moralizante, faz com que essa pessoa se explore, com que se ordene interiormente e, desta forma, ela sente-se valorizada e digna de respeito. Em conjunto, estas dinâmicas promovem um movimento terapêutico e é por isso que a escuta é tão importante.

 

Do que se vai apercebendo, existe muita solidão em Lisboa?

Existe. Mas a solidão é, de facto, uma questão paradoxal. O ser humano é um ser social por natureza, por isso claramente necessitamos dos outros que nos rodeiam para vivermos. Se não conseguimos partilhar a nossa existência com alguém, se procuramos alguém e não descobrimos ninguém que esteja disponível para nós, ninguém que se importa verdadeiramente connosco, então aquilo que surge é o vazio e uma sensação de desconforto e inquietude, de se estar incompleto. Em todo lado – e Portugal não é exceção –, as pessoas estão cada vez mais sozinhas. No nosso país, nos últimos anos, diz-nos a estatística que o número de famílias de uma só pessoa tem aumentado drasticamente e que o número de indivíduos em idade ativa por idoso tem diminuído bastante. Este é um fenómeno maioritariamente urbano, o que quer dizer que necessariamente a cidade de Lisboa se destaca. Sabemos que Lisboa tem uma população envelhecida e que a faixa etária acima dos 65 anos é um dos momentos em que mais facilmente se pode sentir a solidão, pois trata-se de uma etapa da vida que é acompanhada por uma sucessão de perdas: é o trabalho, é o status social, é o companheiro de uma vida, até algumas qualidades ou características físicas. Mas a solidão é transversal a todas as faixas etárias, daí ser um fenómeno que é complexo e paradoxal, já que se pode sentir solidão mesmo estando acompanhado. É o que se passa por exemplo no seio das famílias, porque ela dá-se também quando nós sentimos que a relação que estabelecemos com alguém não satisfaz a nossa necessidade de reconhecimento.

 

O Patriarcado de Lisboa apoiou, em novembro de 2016, a criação do Gabinete de Escuta. Que serviço é este?

O Patriarcado de Lisboa apadrinhou e apoiou, desde a primeira hora, o Gabinete de Escuta e estamos em estreita ligação. É um projeto que nasce da identificação da necessidade das pessoas de serem escutadas e da vontade de apoiar qualquer pessoa, perante qualquer situação de crise ou sofrimento, de angústia, seja ela por doença, por solidão, luto, desemprego, falta de rendimento escolar ou profissional, mau relacionamento com os outros ou consigo mesmo, qualquer situação de desesperança ou ausência de sentido para a vida. Identificada esta necessidade de acompanhamento, existe uma equipa de seis voluntários – constituída por um sacerdote, o padre Fernando Sampaio, dois assistentes espirituais leigos, o Fernando d’Oliveira e a Fátima Gonçalves, uma psiquiatra, a Margarida Neto, uma psicóloga, a Ana Nunes, e eu, que sou counsellor –, com formação específica para o efeito, que presta apoio psicoemocional através do método de relação de ajuda, que é um método que assenta na psicologia humanista e no counselling. É importante clarificar que o Gabinete de Escuta não é um confessionário, não é um gabinete de psicologia, nem é tão pouco um sítio onde as pessoas vão procurar conselhos. A relação que se pretende de ajuda passa por acompanhar alguém para que ela se torne responsável pela sua própria vida, tendo em consideração os seus recursos próprios e os seus limites. Portanto, que seja ela própria a identificar a solução para fazer frente a um problema que atravessa naquela altura da vida ou que seja capaz de lidar de forma saudável com alguma situação que não é ultrapassável, como o diagnóstico de uma doença que é incapacitante ou fatal.

 

Como se processa o acompanhamento?

Normalmente, esta relação de ajuda faz-se numa série de sessões de acompanhamento, que podem ir até 16, no período de um ano. São encontros pessoais, totalmente confidenciais e gratuitos, nos quais abordamos os sentimentos, as emoções, os relacionamentos, os modos de pensar e os padrões de comportamento. Desde a sua abertura, em 25 de novembro de 2016, até ao dia 31 de dezembro de 2018, tivemos o contacto de 250 pessoas, acompanhámos 140 e fizemos mais de 400 atendimentos. O que quer dizer que o Gabinete de Escuta é um verdadeiro recurso social de prevenção e até de intervenção, que dá uma resposta integral e única e que é complementar, neste sentido, aos apoios que existem atualmente para as pessoas da área de Lisboa.

 

Quem são as pessoas que vos procuram?

Quem nos procura, sabe que nós fazemos um atendimento que é integral, ou seja, que atende a todas as dimensões da pessoa, incluindo a dimensão espiritual e a dimensão religiosa, que é algo que no acompanhamento psicológico tradicional não é feito. Por outro lado, as pessoas sabem que o atendimento é gratuito e imediato e que não têm de passar por uma série de crivos burocráticos para ter este acompanhamento psico-emocional. Outra situação que pesa na procura do nosso gabinete é o facto de as pessoas não sentirem o estigma de estarem a recorrer a algum profissional da área da saúde mental. O principal grupo de dificuldades que identificámos nas pessoas que recorrem a nós – cerca de um terço – foi o dos problemas de relacionamento interpessoal e intrapessoal. Digamos que reflete um pouco o perfil das pessoas que nos procura, 80% das quais são mulheres, sendo 40% casadas – a viuvez ocupa apenas 14% –, o que mostra que os problemas de solidão estão maioritariamente associados à solidão dentro da família e não à solidão que vem decorrente de uma situação de viuvez. A faixa etária é surpreendente. Quando iniciámos o Gabinete de Escuta, estávamos à espera de pessoas acima dos 65 anos, e afinal não. Estamos a falar de uma faixa etária ativa, entre os 25 e os 65 anos. Essa é a faixa etária que mais nos procura. E surpreendentemente também são diferenciadas, no sentido em que 40% das pessoas que nos procura tem um grau de licenciatura ou superior, portanto mestrado ou doutoramento. Isto era algo que nós não esperávamos e é algo que tem sido consistente ao longo do tempo. De resto, cerca de um terço das pessoas procuram-nos por questões de índole espiritual, às vezes até numa procura de solução mágica para algumas situações que têm, mas também por perda de sentido de vida, por alguma revolta com Deus, por alguma perda de fé associada a situações de luto, de perda, de doença. Depois, recebemos pessoas que precisam de ser acompanhadas por questões associadas ao luto, que identificam a depressão como a primeira razão para recorrerem a nós.

Todos os casos que acompanhamos são especiais para nós, mas ficam-nos na memória aqueles que têm um final que responda aos objetivos a que nos propusemos. Temos pessoas que partilharam connosco que há uma vida distinta antes do Gabinete de Escuta e outra depois do Gabinete do Escuta. Isso marca-nos de uma forma muito positiva e é aquilo que nos motiva para continuar.

 

Há o desejo de abrir novos centros pela diocese?

Ao contrário do que aconteceu no primeiro ano de atividade, em 2017, em que as pessoas eram maioritariamente oriundas do centro de Lisboa, percebemos, no decurso de 2018, que houve uma alteração e recebemos claramente mais pessoas que vinham da linha de Cascais ou do eixo Amadora-Sintra. Aquilo que sentimos é que tínhamos que chegar a essas pessoas e, neste momento, o nosso projeto passa precisamente por tentar abrir gabinetes que estejam mais próximos dessas pessoas.

 

Que outros projetos têm para o GEscuta?

O futuro do Gabinete de Escuta passa pela criação de uma associação privada de fiéis, junto do Patriarcado de Lisboa, que possibilite uma maior abrangência quer do ponto de vista geográfico, para poder chegar às periferias, quer do ponto de vista da maior procura que a abertura destes gabinetes necessariamente vão gerar. Queremos alargar a nossa intervenção geográfica e demograficamente e, para isso, temos necessariamente que contar com uma rede de voluntários a quem temos que dar uma formação específica. Montar toda esta rede de apoio, muito mais abrangente do que o projeto piloto inicial contemplava, requer uma estrutura que seja sustentável e viável financeiramente. Este programa, para nós que somos todos voluntários e temos a nossa profissão, é claramente ambicioso. Quem se quiser disponibilizar para ajudar, e fazer parte da nossa equipa de voluntários escutas, temos todo o gosto em os acolher. Essencialmente pessoas que estejam ligadas à área da saúde e que tenham uma sensibilidade acrescida para lidar com os problemas das pessoas e que já as acompanhem no seu âmbito profissional. Depois receberão formação específica dentro da metodologia da relação de ajuda, do counselling e da psicologia humanista.

 

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Perfil

Coordenadora do GEscuta desde o início do projeto, em novembro de 2016, Sandra Chaves Costa é engenheira química de formação e trabalhou na indústria farmacêutica durante cerca de 20 anos, em cargos de gestão e na área médica. Recentemente, terminou o mestrado em Counselling e, há três anos, concluiu uma formação na área da Pastoral da Saúde, no Centro de Humanização para a Saúde, em Madrid, Espanha, da Ordem de São Camilo. “Em 2016, fui desafiada a integrar a equipa fundadora do GEscuta por um padre amigo, António Pedro Monteiro, dehoniano, que trabalhava com o padre Fernando Sampaio como capelão no Hospital de Santa Maria. Por outro lado, eu pertenço à comunidade da Capela do Rato e estava lá, muitas vezes, com o padre António Pedro, que ia substituir o padre Tolentino. Foi ele que me trouxe para esta área, para este desafio de meio de vida”, recorda esta leiga, casada e mãe de três filhos.

 

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De que forma as pessoas podem contactar o GEscuta?

O gabinete funciona, neste momento, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, perto do Marquês, em Lisboa, e é facilmente acessível através de Metro ou autocarro. As pessoas podem ligar para o número de telefone 964400675, que está disponível das 9 às 19 horas, de segunda a sexta-feira, ou então através do e-mail gescuta@gmail.com.

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