Missão |
Maria Francisca Caldeira Cabral
Voltar para onde quer que estejam as ‘fronteiras’
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Maria Francisca Caldeira Cabral nasceu em Lisboa, a 26 de abril de 1996. Está atualmente a terminar o 4º e último ano de Direito, na Universidade de Lisboa. Entre as várias experiências de voluntariado, esteve em Ragusa (na Sicília), no projeto ‘At the frontiers’.

 

Nasceu numa família católica e grande e diz que “crescer numa família grande, tem desde logo uma enorme vantagem: aprender a viver com os outros”. “Os feitios e educações várias dos primos, as conversas intermináveis à mesa sobre todo o tipo de assuntos, onde todas as opiniões são bem-vindas (católicas, ateias, comunistas, conservadoras e afins). A família da minha mãe e a do meu pai são muito diferentes entre si (e mesmo dentro de si), e ambas muito presentes e em 2004 os meus pais divorciaram-se e eu e o meu irmão passámos a viver no famoso regime da semana sim, semana não. Em 2007/2008, já recasados, nasceu a Marta, filha do meu pai e da minha madrasta (e minha afilhada) e o Mendo, filho da minha mãe e do meu padrasto. Ser irmã mais velha, com 11 anos de diferença marcou muito a minha personalidade e sentido de responsabilidade. Em 2012 nasceu a minha última irmã, Isabel. O meu pai andou no São João de Brito e a espiritualidade inaciana moldou-o muito, a minha mãe falava de Jesus e com Jesus, como quem fala de um amigo e Pai que se faz presente em cada momento da sua vida. Fiz o percurso cristão normal, andei na catequese do Campo Grande, nos grupos de Schoenstatt, animei um grupo de ACI (grupos de jovens das Escravas), mais tarde dei catequese na Paróquia de Santa Isabel e juntei-me a um grupo de CVX (grupos de oração dos Jesuítas). Não me lembro de mim mesma sem sentir a presença de Jesus. Não houve nenhum momento, nem mesmo dentro de uma agitada adolescência, em que sofresse de uma verdadeira crise de fé. Não obstante o meu compromisso como católica e a seriedade com que fui encarando a minha relação com Deus, foi crescendo e mudando à medida que eu também ia crescendo e mudando. Olhando para trás vejo que Deus foi-me apresentando propostas diferentes, na medida certa da minha capacidade e maturidade. A preocupação com a perseverança na oração, no aprofundar a relação com Deus e em aceitar a proposta da santidade apareceu-me numa fase de grande ‘consolação’ espiritual, que coincidiu com a minha entrada num grupo de CVX, e que acho que foi o início da minha fé adulta”, refere.

 

O projeto ‘At the frontiers’

Maria Francisca partilha na primeira pessoa: “No meu 2º ano de faculdade, cheguei a meio e decidi parar o ano para me dedicar a melhorar notas. Com esta decisão veio maior disponibilidade e tempo livre. Foi também por esta altura que se deu o auge da ‘crise dos refugiados’ (ou pelo menos da sua cobertura mediática). Se for completamente honesta, a decisão de partir não foi muito pensada. Eu sempre tive este desejo de ir, com a Igreja, em missão. O projeto ‘At the frontiers’ foi-me apresentado pela minha madrasta (que viveu muito anos em missão, na Guiné-Bissau e que me incentiva sempre a participar neste tipo de projetos), e o meu processo de discernimento reduziu-se a um impulso voluntarista e à janela de oportunidade que vivia. Desde que me decidi candidatar até que aterrei em Ragusa (Sicília), tudo se sucedeu muito rápido. Houve uma entrevista por Skype com a equipa da JRS, fui selecionada, pus-me a trabalhar no verão para suportar os custos da viagem e parti. Parti sem nada. Sem expectativas, sem medos, mas também sem formação (o que muita falta me fez). Só quando cheguei é que percebi a exigência da proposta que nos estava a ser feita: todos os meses chegavam barcos à costa italiana (em particular da Sicília). Os recém-chegados eram distribuídos por centros de acolhimento, onde aguardavam todo o demorado e complexo processo que é a avaliação do seu pedido de asilo e a atribuição ou não do estatuto de refugiado (o que pode demorar mais de um ano). Enquanto esperam, estão confinados à residência onde habitam com todos os outros que estão nas mesmas circunstâncias. Os centros com quem trabalhávamos eram só para homens (à exceção de um, que albergava famílias). Os primeiros dias de quem chega, depois de uma travessia de barco nas condições sabidas, são dias de alívio e alegria. Mas como qualquer ser humano, uma vez passada a euforia, a vontade de começar a construir a sua vida (em particular de trabalhar) e de assentar, urge. E começa a ser mais gritante à medida que as semanas e os meses se sucedem. Esta impaciência, a solidão de quem deixou uma vida para trás, o incómodo de viver com outros 15/30 homens sem poder sair dali, começam a criar uma revolta e mau estar. E é desta questão que surge a proposta feita aos voluntários: ir para ESTAR com eles. Esta proposta desorientou-me. Na passagem de Jesus com Marta e Maria, eu sou claramente ‘Marta’; ‘Estar’ requeria de mim duas coisas que me foram formidavelmente difíceis e tão reveladoras: Saber estar: saber estar parece óbvio, mas não é. Principalmente se se quiser estar como Jesus esteve. Um ‘estar’, ali, requereu ir ao encontro de pessoas tão diferentes de mim, aprender a ouvir com compaixão, mas sem histerismos exacerbados, criar momentos de alegria e comunhão num cenário de revolta. Saber comunicar e chegar ao outro, sendo que do outro lado estavam pessoas que tinham várias culturas, línguas, códigos, expectativas e religiões (e nada me era familiar); ‘Estar’, não é contruir, remediar, remendar, estudar e todas estas atividades superprodutivas e frenéticas que nos ensinam, não traz resultados imediatos ou visíveis, não é uma atividade rápida, que mude a vida de 30.000 pessoas, e que nos traga satisfação ao ego… não entra na lógica capitalista. Mas é central na lógica de Deus; Estar todos os dias é encararmos as pessoas no seu todo, é passar por cima do rótulo de ‘refugiado’, é passar por cima de faltas de empatias, ou do seu contrário. É dedicar tempo a UMA pessoa de cada vez, e pedir incessantemente a Deus que nos dê foco e sabedoria, para saber fazer o outro sentir-se acompanhado e aceite. À imagem do que Deus nos faz sentir quando nos pomos a rezar; Humildade: que banho de água fria que foi, quando percebi que não me iam pedir que mudasse tudo o que estava de mal! Pior ainda foi quando percebi que mesmo que mo pedissem e eu quisesse muito, também não sabia. É difícil quando se encara uma situação de sofrimento e não se consegue mudar nada, nem mesmo aqueles detalhes pequeninos, que sabemos fazerem alguma diferença na vida das pessoas. Passaram-se os dias e aprendi o nome de todos, as histórias de família, os motivos por que lá tinham ido parar, construímos mesas de ping-pong, jogos de tabuleiro, decorei a melhor maneira de lhes explicar o procedimento legal que o pedido deles requeria, como é que era a vida na Europa, alertar para os perigos de sair do centro sem documentos (que se encontrassem a polícia eram dados como imigrantes ilegais e se encontrassem a mafia, eram levados). Concentrei-me em fomentar boas relações entre os que trabalhavam no centro e os que lá viviam e tantas outras coisas que afinal cabiam no verbo ‘estar’. E quando já estava finalmente a saber fazê-lo, acabou a missão e voltei para Portugal. A chegada foi dura, não queria ter voltado, sentia que não tinha conseguido nada. Entrei num período de grande desolação. Perguntavam-me constantemente e com alguma esperança que a resposta fosse curta e alegre: e então o que é que achaste do acolhimento dos refugiados? Eu sabia que queriam ouvir que tudo corria sobre rodas, que dar um teto e roupa lavada era suficiente para os alegrar. Mas não era. Era preciso que o processo de registo e avaliação dos pedidos fosse mais rápido e justo, que as populações estivessem mais recetivas a recebê-los, que os que trabalham diretamente com quem chega, tivessem maior formação (nem inglês ou francês os trabalhadores do centro falavam), que houvesse maneira de os distribuir pela Europa, de os integrar no mercado laboral e tantas outras questões, desesperantemente dependentes de uma boa vontade política, que não existia. Por fim voltei à normalidade, porque a bem dizer a minha realidade é cá. Ainda hoje mantenho contacto com parte dos refugiados com quem trabalhei. Devo dizer que a esmagadora maioria foi deportada, ou fugiu dos centros e puseram-se a caminho do norte da Europa. A minha experiência em Itália levou-me a perceber que ser útil é uma proposta diária, que requer preparação, formação e muita confiança na providência. Agora a acabar a licenciatura estou a fazer a formação dos Leigos para o Desenvolvimento, na esperança que seja a vontade de Deus enviar-me em setembro, para trabalhar 1 ano num dos projetos em África, desenvolvidos pelos Leigos. Já passaram 2 anos desde que voltei de Itália, mas o desejo de voltar mantem-se muito presente. Voltar, não obrigatoriamente para Ragusa, mas para onde quer que estejam as ‘fronteiras’.”

texto por Catarina António, FEC | Fundação Fé e Cooperação
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