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Guilherme d'Oliveira Martins
Voltar à questão social
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A visita do Papa Francisco a alguns países de África decorreu entre 4 e 10 de Setembro, tendo permitido ao Sumo Pontífice a lembrança de que “o Evangelho é o mais poderoso fermento de fraternidade, de liberdade, de justiça e de paz para todos os povos”. Lembremo-nos de que Moçambique tem 70% dos 28 milhões de habitantes a viver abaixo do limiar da pobreza, é o décimo mais pobre mundo, que Madagáscar é o quinto mais pobre e que a Maurícias foram escolhidas pelo Papa como um exemplo de diálogo social, com condições económicas excecionais… “Em Moçambique (disse o Papa Francisco) “fui semear sementes de esperança, paz e reconciliação numa terra que tanto sofreu no passado recente por causa de um longo conflito armado e que na passada Primavera foi vítima de dois ciclones que causaram danos muito graves”. As palavras do Papa Francisco e os seus gestos de compromisso devem ser lembrados, num momento em que a economia do mundo se vê confrontada com desafios exigentes – que têm a ver com a criação de condições de paz e desenvolvimento humano, que combatam a fome e a miséria, a ignorância e a doença, em nome de uma noção universalista de dignidade humana.
O tema permite-nos lembrar a urgência da questão social que volta à ordem do dia. Mas não se trata apenas de um tema dentro das fronteiras, mas de uma questão global, que considere as profundas diferenças e assimetrias, que exigem cooperação, consciência da complexidade e convergência de esforços visando uma economia das pessoas, pelas pessoas e com as pessoas. Se nos países pobres há uma explosão demográfica descontrolada, nos países ricos vive-se um perigoso inverno demográfico, de permeio temos os efeitos da mobilidade e a emergência dos refugiados, de diversos tipos e origens. Se a mobilidade das pessoas é um dado inexorável do nosso tempo, temos de considerar as condições em que se desenvolve, para que não tenhamos novas formas de exclusão, de dominação e exploração. Não basta falar de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), nem de aquecimento global e de destruição do meio ambiente – é indispensável compreender que a cooperação para o desenvolvimento tem de ser assumida corajosamente, com mais meios orientados para as parcerias para o desenvolvimento. Hoje sabemos que não basta dar um peixe, nem mesmo apenas a cana para pescar, é indispensável ensinar e apreender e partilhar responsabilidades.
Torna-se indispensável regressar à consideração da justiça distributiva nas atuais condições sociais e económicas locais e globais. Há novos desafios que obrigam a pensar a “doutrina social da Igreja” à luz de novos compromissos que assegurem os direitos e liberdades fundamentais, a mobilidade das pessoas, o equilíbrio demográfico, a inclusão, a cooperação, o desenvolvimento sustentável, a proteção do meio ambiente, a paz e a segurança. E temos de lembrar, vinte anos antes da Encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII (1891), a intervenção do Bispo de Mainz, Wilhelm Emmanuel von Ketteler (1811-1877), proferida em julho de 1869, há 150 anos. Tratou-se de uma importante pregação que suscitou especial atenção, que teve lugar junto do santuário de Liebfrauenheide, próximo de Offenbach, perante cerca de 10 mil operários fabris, no auge da industrialização, sobre os temas da justiça social e do futuro do trabalho. E no dia seguinte, Ketteler apresentou aos bispos de Fulda um amplo relatório sobre o tema “A assistência da Igreja aos operários das fábricas”. O documento passou a ser considerado, com justiça, a Magna Carta do pensamento social cristão.
Hoje muito mudou. Mas mantém-se a necessidade de compreender onde estão as injustiças e onde deve haver emancipação. A pregação em Liebfrauenheide e o relatório para a Conferência Episcopal de 1869 constituem declarações amadurecidas e intervenções determinadas sobre o problema do trabalho. Defenderam o aumento do salário e a proibição do trabalho infantil; consideraram a greve e a ação sindical como meios legítimos e necessários para obter condições de trabalho mais justas; e entenderam caber aos sindicatos a legitima representação dos trabalhadores. E afirmava: «O operário não tem qualquer esperança de poder sair da sua condição miserável. No seu trabalho não tem nada que o ajude a elevar-se espiritualmente; trabalha não para si, mas para os capitalistas; as longas horas de trabalho, a dureza e a monotonia embrutecem-no». Por isso, prosseguia o texto de Ketteler, a Igreja tinha a obrigação de ajudar, porque a questão social é inseparável da função pastoral dos bispos. Daí ser preciso «criar instituições para a humanização destas massas esquecidas» antes de pensar na cristianização. E assim, impunha-se um plano de mobilização e de formação, designadamente para os menos atentos, que pudesse enfrentar a grave situação. É tempo de regressar à questão social como realidade de todos…
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