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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Bebés sem rosto

Nestes últimos tempos, duas notícias chocaram particularmente os portugueses: o nascimento do Rodrigo, uma criança cujas malformações não foram detectadas pelo obstetra que acompanhou a gravidez; e o caso do bebé recém-nascido que foi abandonado no lixo e que, graças a Deus, foi encontrado vivo.

Em relação ao Rodrigo, a indignação recaiu sobre o médico, que alegadamente não soube interpretar a ecografia em que as deficiências do nascituro eram manifestas. Por este motivo, não fez saber aos pais do bebé, como era seu dever e direito deles, as graves malformações que padecia o seu filho. Ante este caso, a Ordem dos Médicos sentiu-se na obrigação de tomar medidas que impeçam, no futuro, que uma situação desta natureza se repita, nomeadamente passando a exigir aos obstetras especiais competências em imagiologia pré-natal.

É óbvio que aos pais corresponde o direito de realizar ecografias, bem como o de conhecer os seus resultados. Estes exames servem para detectar o estado de saúde do ser humano em gestação, para os casos em que seja necessária alguma intervenção intrauterina, ou imediatamente posterior ao nascimento da criança. Quando se verifica alguma anormalidade, estes exames também servem para preparar os pais para a iminência do nascimento de um filho que, por esta razão, irá requerer cuidados especiais.

A notícia de um filho com algum tipo de deficiência é um duríssimo choque para os pais, como é óbvio; os que são cristãos sabem, contudo, que uma tal circunstância não é uma desgraça, mas uma graça de Deus, não só para o próprio, mas também para os seus pais e familiares. Estas crianças, abençoadas com uma grave limitação congénita, são almas predilectas de Deus, cuja salvação está a priori garantida: quando são absolutamente incapazes de praticar o mal, estão, por graça do seu baptismo, irreversivelmente ‘condenadas’ ao Céu.

É razoável a indignação geral, pela grave e indesculpável negligência do médico. É também óbvia a sua enorme culpa em relação aos pais da criança, enganados quanto ao estado de saúde do seu filho. Mas, mesmo que atempadamente tivessem sido advertidos destes problemas pelo seu médico assistente, como era sua gravíssima obrigação, não seria aceitável que, tendo em conta essas deficiências, procedessem à eliminação dessa criança. Não há, em caso algum, um direito à morte, muito menos de um ser inocente, pois por graves que sejam as suas limitações, toda a vida humana é digníssima: tanto vale a vida de um génio como a de um demente. Todos os seres humanos, enquanto imagem e semelhança de Deus, têm a mesma dignidade e são, cada qual a seu modo, um dom insubstituível para os seus pais e família, para a Igreja e para o mundo. O caso de Stephen Hawking é o exemplo paradoxal de como, com um físico afectado por uma gravíssima doença incurável, se pode ser um físico de excepção.

Não seria razoável desculpar a incúria do clínico, mas talvez a sua inépcia tenha sido um mal que veio por bem. Se foi por este motivo que essa vida não foi eliminada, e tê-lo-ia sido se os seus progenitores fossem, em tempo útil, informados das suas limitações, seria caso para dizer que essa culpável negligência salvou uma vida humana.

Em relação ao bebé atirado para o lixo, ninguém lamentou, que se saiba, a sua sobrevivência. Certamente ninguém disse que, tendo uma mãe capaz de tão terrível acto, mais lhe valia não ter nascido, ou ter morrido à nascença. Talvez, como o Presidente da República já disse, o seu evidente desespero, aliado às suas precárias condições socioeconómicas, atenue, ou exclua até, a sua eventual responsabilidade criminal. Mas é unânime a reprovação pelo seu acto pois, mesmo que se considerasse incapaz de sustentar o filho, poderia e deveria recorrer a instituições socio-caritativas, da Igreja ou do Estado, para que dele cuidassem.

A sabedoria popular diz que, ao menino e ao borracho, põe Deus a mão por baixo. Não estou tão certo dessa protecção em relação aos bêbados, mas não duvido que, nos casos destes dois bebés sem rosto, a divina providência supriu a incúria humana e, por isso, podemos hoje dar graças pelo dom da vida destas duas crianças.

Deus, mais uma vez, escreveu direito pelas linhas tortas da negligência médica e da irresponsabilidade maternal. Mas precisamos de médicos com mais ciência e, sobretudo, pais e mães com mais amor.