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Comemorar o passado a pensar no futuro, por Francisco Sarsfield Cabral

O regime republicano completa um século em Portugal. Atravessou períodos difíceis e no entanto sobreviveu. Nem Salazar o eliminou. Justifica-se, por isso, celebrar cem anos de República.

Mas, celebrar como? Certamente não evocando o passado com espírito saudosista ou propagandístico. Estudar a implantação da República e os anos que se lhe seguiram é importante. Mas numa perspectiva crítica e plural e, sobretudo, aprendendo as lições do passado para prepararmos um futuro melhor.

 

Conflito religioso

O que, aliás, já aconteceu no caso do conflito entre os dirigentes republicanos e a Igreja Católica. A Lei de Separação do Estado e das Igrejas, de 1911, até parecia corresponder a um princípio hoje plenamente acolhido pelos católicos: Estado e Igreja movem-se em diferentes esferas autónomas, devendo colaborar para bem da sociedade mas não interferir na esfera alheia. “A Deus o que é de Deus, a César o que é de César...”.

Aconteceu, porém, que aquela lei de 1911 não era propriamente de separação, antes pretendia subordinar a Igreja ao poder do Estado. Curioso foi que padres, bispos e leigos reagiram com determinação contra tal sujeição. Reacção porventura inesperada da parte de uma Igreja portuguesa que tinha vivido com fraca autonomia e dependente do Estado na monarquia constitucional, quando o catolicismo era a religião oficial do país. Como mostra o P. Doutor João Seabra, a verdadeira separação Igreja/Estado ficou a dever-se a essa recusa dos católicos a subordinarem-se ao poder político em assuntos religiosos.

O afrontamento com os católicos foi altamente negativo para a I República. Daí o cuidado dos líderes democráticos, como o Dr. Mário Soares, em não reacender conflitos com a Igreja após o 25 de Abril. Uma Igreja já pós-conciliar, aberta aos valores da democracia, com a qual o diálogo se tornou fácil.

Sinal de que o relacionamento da Igreja com a República é hoje bem diferente do que era há um século encontramo-lo, por exemplo, na activa e construtiva participação do Senhor D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, na Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário da República. Ou na organização pela Universidade Católica Portuguesa de várias iniciativas apoiadas pela Comissão do Centenário.

Mas se as relações entre o Estado e as religiões já não representam um problema espinhoso em Portugal, o mesmo já não acontece com o Islamismo, seja vários países europeus, seja em países islâmicos onde não existe verdadeira liberdade religiosa. Por isso a questão da laicidade do Estado é muito actual e será um dos temas a abordar neste Centenário – partindo do passado para perspectivar o futuro.

 

Questões de cidadania

A mesma lógica se aplica às questões de cidadania. Pelo menos nas intenções, o regime republicano visava estimular a cidadania dos portugueses. Ora as democracias actuais debatem-se com um problema de representatividade: os cidadãos sentem-se pouco representados pelos políticos e afastam-se da actividade cívica e política.

Convém lembrar que a corrente dita de republicanismo cívico, nos Estados Unidos, se interessa prioritariamente pela participação dos cidadãos na esfera política. Aí está mais um tema que as comemorações do Centenário de República vão permitir aprofundar.

E há valores característicos dos republicanos fundadores do regime que importa não apenas lembrar como actualizar no que têm de válido para os tempos actuais. Um exemplo: na sua esmagadora maioria, os políticos da I República saíram dos seus cargos mais pobres do que tinham entrado. Poderemos dizer o mesmo dos políticos de hoje?

Claro que as comemorações que oficialmente começam no dia 31 de Janeiro no Porto não terão apenas a dimensão do debate de ideias. Haverá inúmeras manifestações artísticas, desportivas (os Jogos do Centenário), recreativas, populares, etc. O mais importante, porém, é que a grande maioria das cerca de 600 iniciativas agora previstas no programa das comemorações partiu da sociedade civil. É um sinal de esperança numa democracia mais participada e melhor, afinal o grande objectivo destas comemorações.

 

Francisco Sarsfield Cabral, Jornalista, Vogal não executivo da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República