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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Falta de fé ou prudência?

Alguns católicos querem, ao contrário dos bispos, mais missas, para pedir o fim da epidemia, mas essas acções iriam propagar a pandemia que se pretende estancar.

À conta da proibição das missas, bem como de outras celebrações religiosas comunitárias, alguns entendem que falta fé ao episcopado católico, precisamente quando, pela situação de crise que o país atravessa, era de esperar uma resposta mais ousada e sobrenatural. Nas redes sociais, não falta quem manifeste a sua indignação pela atitude da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), sobretudo quando determinou, até nova ordem, a suspensão das celebrações penitenciais e eucarísticas.

Alguns católicos, cuja devoção não está em causa, quereriam, pelo contrário, mais missas e mais oração, pessoal e comunitária. Esperavam dos bispos uma atitude mais sobrenatural, talvez até uma peregrinação nacional a Fátima, para pedir o fim da epidemia. Mas, seria sensato incorrer em atitudes que iriam propagar a pandemia que se pretende estancar?! Seria lógico que a Igreja, fiada numa crença que, nesse caso, seria irracional, entrasse em estado de negação em relação às autoridades científicas e sociais?!

Sempre que há uma questão que apela à prudência, há posições opostas. Um exemplo histórico: a atitude de Pio XII em relação ao nazismo e, sobretudo, ao Holocausto. Ainda hoje se debate se o comportamento do romano pontífice nessa ocasião foi prudente ou, pelo contrário, pecou por insuficiente. O Papa de então, se tivesse mais abertamente denunciado o regime nazi, teria contribuído eficazmente para a salvação de vidas inocentes ou, pelo contrário, teria agravado a situação?!

De facto, a intervenção pública do episcopado holandês, condenando o regime nacional-socialista alemão, não só não resultou em benefício de ninguém, como até provocou uma mais violenta perseguição dos judeus e dos católicos nesse país. A essa retaliação nazi se ficou a dever, entre outras, a morte de Santa Edith Stein, a religiosa carmelita, de origem judaica, que se tinha refugiado na Holanda e que foi, depois dessa tomada de posição do episcopado neerlandês, deportada e morta num campo de concentração nazi.

Dito isto, é impossível que qualquer atitude da CEP seja consensual: o episcopado seria sempre preso por ter cão, ou por o não ter. Se os bispos tivessem mantido as missas e as demais actividades religiosas, é certo e sabido que muitos reprovariam hoje a insensatez de medidas potencialmente favoráveis à propagação de um vírus que pode ser letal. Qual seria a reacção da opinião pública se soubesse que uma pessoa de idade tinha falecido por ter sido contaminada numa missa, ou por contágio de um neto, infectado numa aula de catequese?! Num cenário desses, a Igreja seria acusada de conivência com essa morte ou, pelo menos, de negligência. E, certamente, qualquer pessoa razoável, consideraria que o bem espiritual decorrente da participação nessa celebração seria desproporcionado em relação à perda dessa vida humana até porque, em circunstâncias normais, uma pessoa doente, ou de muita idade, está dispensada da assistência à missa dominical, sem culpa nem prejuízo da sua alma.

A virtude cristã deve ser heroica, como acontece no martírio, mas sem nunca deixar de ser razoável. Um modo de proceder que não é racional não é virtuoso, nem humano. O heroísmo é um justo meio entre a cobardia e a temeridade: um temerário não é virtuoso, como um cobarde também não. A graça sobrenatural não anula, nem substitui, a razão humana, pressupõe-na e sublima-a, mas sem nunca a anular. Agir contra a razão nunca é virtuoso, nem cristão, até porque o autor da graça também o é da natureza e da razão.   

É verdade que, segundo a tradição, quando Pedro se afastava de Roma, onde uma nova perseguição contra os cristãos se tinha iniciado, apareceu-lhe Cristo, que lhe disse que ia para a cidade eterna sofrer, de novo, a sua paixão e morte. A estas palavras, Pedro percebeu que o seu lugar era junto das suas ovelhas, mesmo que o preço a pagar fosse o do seu martírio, que de facto aconteceu, junto ao lugar onde hoje está edificada a basílica que tem o seu nome. Quer isto dizer que o Papa, os bispos e os padres, devem arriscar a sua vida num contexto de perseguição ou pandemia, mantendo as celebrações religiosas, as aulas de catequese e demais reuniões, sem ceder às pressões ‘laicas’, que proíbem a realização de tais actos, na medida em que podem ter consequências nefastas para a saúde pública?

Como sempre, a resposta vem no Evangelho. Jesus cumpria, habitualmente, as ordens emanadas das autoridades religiosas e civis do seu tempo: ia, como qualquer judeu piedoso, a Jerusalém, por ocasião da páscoa judaica e pagava os impostos, porque se deve dar ao César, o que é de César, e a Deus o que é de Deus (cf. Mc 12, 17). É certo que foi motivo de escândalo em relação à observância do sábado, mas não porque não cumprisse essa lei religiosa, mas porque a interpretação que dela faziam os fariseus não correspondia ao seu verdadeiro sentido. Ele próprio afirmou que não tinha vindo revogar a lei, mas dar-lhe pleno cumprimento (cf. Mt 5, 17).

Um episódio parece especialmente esclarecedor sobre este particular. Nas vésperas da sua paixão e morte, Cristo afasta-se da Judeia, porque nessa região a sua vida corria perigo (cfr. Jo 10, 39-40). Ou seja, mesmo sendo perfeito Deus e homem perfeito, Jesus age com prudência humana, quando podia ter recorrido aos seus poderes sobrenaturais para fazer frente a esse perigo eminente. Quer isto dizer, salvo melhor opinião, que o cristão deve ser prudente e acatar as recomendações emanadas da legítima autoridade civil e religiosa.

O Estado não pode impedir ninguém de rezar e, se a Igreja proibir aos fiéis a assistência à missa dominical, com certeza que, obedecendo a essa indicação, alcançam as graças espirituais a que teriam acesso se participassem na Eucaristia. Só um escrupuloso ficaria inquieto com uma tal falta que, na realidade, o não é, pois falta seria desobedecer, consciente e voluntariamente, à autoridade eclesial. De um ponto de vista espiritual, costuma-se dizer que, nestes casos excepcionais, a Igreja supre. Portanto, o cristão que não foi à missa, por absoluta impossibilidade, não só não pecou como recebeu as graças que teria recebido se tivesse ido e participado na Eucaristia. O fiel não só não fica prejudicado, como até ganha o mérito da sua obediência.

Santa Teresa de Ávila queria fazer grandes penitências, como outras religiosas do seu convento faziam, mas foi-lhe proibido tais práticas pela sua superiora, dado o seu estado de saúde. Inconformada com essa interdição, queixou-se a Jesus que, numa aparição, lhe disse que mais lhe agradava a obediência dela do que os sacrifícios dessas religiosas.

Mas, a regra de prudência não admite excepções? Claro que sim. Depois de Jesus se ter afastado da Judeia, chegou-lhe a notícia de que um seu amigo, Lázaro, estava doente. As suas irmãs, Marta e Maria, pediram-lhe que fosse ter com ele e o curasse e, por isso, Jesus decidiu regressar à Judeia. Esta atitude do Mestre escandalizou os seus discípulos, que lhe disseram: “Rabi, há pouco os judeus procuravam apedrejar-te e Tu queres ir outra vez para lá?!” (Jo 11, 8). Mas, vendo que o Senhor não desistia desse seu heroico propósito, Tomé disse: “Vamos nós também, para morrermos com Ele!” (Jo 10, 16).

A conclusão parece evidente: os ministros católicos devem-se abster, enquanto durar este estado de crise, de celebrações religiosas que potencialmente contribuam para a propagação da epidemia, como também Cristo fugiu da Judeia, quando a sua vida aí corria perigo. Mas, como Jesus, que regressou a essa região para ressuscitar Lázaro e consolar as suas irmãs, devem socorrer os fiéis que estejam urgentemente necessitados da administração dos sacramentos, mesmo com risco da própria vida, se necessário for, como também Cristo o fez, para ressuscitar o seu amigo.

Jesus podia ter evitado a doença e a morte de Lázaro. Marta e Maria tinham esse convencimento e, por isso, disseram-lhe: “Senhor, se tu cá estivesses, o meu irmão não teria morrido” (Jo 11, 21 e 32). Alguns judeus disseram também: “Então este, que deu a vista ao cego não podia também ter feito com que Lázaro não morresse?” (Jo 11, 37). Razão não lhes faltava, mas convinha que Lázaro adoecesse e até morresse, para que pela sua morte e ressurreição se manifestasse que Cristo, que é amor, é também a ressurreição e a vida (Jo 11, 25).

A obediência dos fiéis aos seus legítimos pastores e a heroica disponibilidade dos ministros seja, pois, uma ocasião de testemunho da caridade cristã. Neste tempo quaresmal de preparação para a celebração da paixão e morte de Jesus Cristo, queira Deus que todos os doentes sejam, como Lázaro, por Ele curados. Que a nenhum nosso irmão doente falte a fraterna solicitude de Marta, nem a piedosa oração de Maria. Que todos os seus fiéis ministros, sejam médicos ou padres, estejam dispostos a socorrer os mais necessitados, até mesmo com risco de vida. E que todos os homens de boa vontade possam reconhecer, sobretudo junto de quem mais sofre, a presença amorosa daquele de quem os judeus disseram, há dois mil anos: “Vede como ele o amava!” (Jo 11, 36).