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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Das Missas ‘virtuais’ à negação dos mistérios da fé
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O Padre Anselmo Borges, em “Missas ‘virtuais’: não juntos, mas unidos” (Sol, 7-4-2020), tece, a propósito das actuais circunstâncias, algumas considerações de carácter doutrinal e litúrgico.
O P. Anselmo Borges não é, em sentido académico, teólogo, mas gosta de emitir opiniões teológicas, geralmente em contradição com o Catecismo da Igreja Católica, aprovado como “norma segura para o ensino da fé e por isso instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial”, pela Constituição Apostólica “Fidei depositum”, de São João Paulo II. Neste sentido, este artigo não é, infelizmente, nada de novo.
Como quem contradiz, consciente e pertinazmente, um dogma da fé católica, incorre em heresia, há quem, embora não negando formalmente as definições dogmáticas, rejeite, contudo, a sua veracidade factual. Alguns exemplos: aceitar que Jesus ressuscitou dos mortos, mas não crer que o seu corpo, verdadeiramente morto na cruz, vive; afirmar que Cristo está presente na Eucaristia, mas negar que essa presença é real, verdadeira e substancial; etc. Claro que, quem mantém uma afirmação dogmática, mas nega a realidade nela significada, também contradiz a fé.
Logo no primeiro ponto deste artigo, põe-se em causa a autenticidade histórica do Evangelho, que se reduz a uma narrativa simbólica: “Jesus andou sobre as águas, como está no Evangelho? Não. Na perspectiva bíblica, o mar é símbolo do mal; dizer que Jesus andou sobre as águas é dizer que ele está acima do mal e nos liberta dele”.
Note-se que, curiosamente, nem sequer se admite a possibilidade de que seja factualmente verdadeiro este episódio bíblico, porque se afirma, dogmaticamente, que Jesus não andou sobre as águas, dando a esta opinião, aliás infundada, mais consistência do que à palavra de Deus. Claro que, com este ‘método’, não só todos os milagres realizados por Cristo ficam reduzidos a mitos, como também o próprio Jesus de Nazaré.
Com a mesma pertinência com que se diz que foi ‘simbolicamente’ que Jesus andou sobre as águas, não o tendo feito realmente, tudo o mais que é dito de Jesus pode também não ter acontecido. Por esta via, tanto pode ser verdade o Evangelho, como o seu contrário. Qual seria, então o valor histórico da Bíblia? Nenhum, porque mais não seria do que uma narrativa mítica, uma mera ficção, sem relação com a realidade.
Aplicando o mesmo critério, que nada tem de científico ou teológico, também se negam as ressurreições realizadas por Cristo: “Jesus ressuscitou mortos? Não. Caso contrário, como é que, sendo o Além o maior abismo da nossa curiosidade, ninguém perguntou a Lázaro como é, se esteve lá quatro dias? Os relatos sobre as ressurreições operadas por Jesus são o que se chama ‘parábolas em acção’”.
Os Evangelhos relatam três ressurreições atribuídas a Jesus: a da filha de Jairo, a do filho da viúva de Naim e a de Lázaro. Estavam mesmo mortos, quando foram alegadamente ressuscitados? No primeiro caso, quando Cristo disse que a rapariga não estava morta, mas simplesmente adormecida, todos troçaram dele, porque qualquer pessoa daquela altura já sabia distinguir o sono natural da morte. O filho da viúva de Naim foi ressuscitado por Jesus quando era levado a sepultar, ou seja, supõe-se que bastantes horas depois de ter ocorrido o seu falecimento. Por último, é o próprio Mestre que confessa aos seus apóstolos que Lázaro morreu e só o ressuscita quando já estava, há quatro dias, no sepulcro. Que o irmão de Marta e Maria nada tenha dito, em relação a esses dias em que esteve morto, não é de espantar, porque, em geral, também os que estiveram em coma não conservam recordações desse tempo, vivido na inconsciência.
Estas três ressurreições não suscitaram quaisquer dúvidas aos contemporâneos de Jesus que delas foram testemunhas presenciais, nem sequer aos fariseus, que eram aos que mais convinha negar estas ressurreições, sobretudo a de Lázaro.
Utilizando o mesmo critério ‘crítico’, também se nega a Anunciação do Anjo a Nossa Senhora – “O Anjo apareceu a Nossa Senhora para lhe anunciar que ia ser mãe de Jesus? Não.” – portanto, supõe-se que também a encarnação e a natureza divina de Jesus Cristo ficam reduzidas a meras ‘parábolas em acção’, ou seja, nada. Quem é, então, Jesus de Nazaré?! “Jesus é especial, tem uma relação única com Deus”. Mas, há alguém que não seja especial?! Não é verdade que, cada ser humano, é para Deus único e irrepetível?! Se Jesus é ‘especial’ e todos somos ‘especiais’, quer isso dizer que Jesus não se distingue, ontologicamente, dos demais seres humanos? É apenas mais um?! É óbvio que a resposta afirmativa não é compatível com a fé da Igreja.
Depois de se ter negado as ressurreições feitas por Cristo, a anunciação do Anjo a Maria e a sua virgindade – como tinha já feito no Natal do ano passado, num artigo de opinião publicado no Observador – o autor também nega a existência de milagres: “Há milagres? No sentido estrito da palavra, isto é, uma intervenção especial de Deus para interromper o curso das leis da natureza e a favor de uns e não de outros, não. Um Deus intervencionista implica ateísmo, pois supõe que Ele criou e se afastou do mundo, para, de vez em quando, intervir nele a pedido.”
Ateísta ou, melhor dizendo, teísta, é, pelo contrário, a concepção de um Deus não intervencionista, ou a negação da revelação e da providência divina. Porque Deus é o autor do universo, e não apenas o seu Grande Arquitecto, também pode alterar as leis pelas quais se rege habitualmente a natureza criada. O milagre é, precisamente, isso, ou seja, uma demonstração do poder divino, o qual não está submetido às leis universais, embora as observe de algum modo, porque também os milagres divinos são, por assim dizer, de acordo com a natureza. Por isso, Jesus nunca fez milagres contra naturam: fez ver os cegos, mas não as pedras; fez andar os paralíticos, mas não as árvores; fez falar os mudos, mas não as plantas, não porque Ele não pudesse fazê-lo, mas porque não seria congruente com a obra da criação, que é também, como o milagre, obra de Deus. Em Deus não há contradição, nem oposição entre a criação, a revelação e a sua providência; o Deus cristão é Pai amoroso, que escuta a oração dos seus filhos e atende misericordiosamente as suas súplicas.
Neste artigo também se ignora o carácter sacrificial da celebração eucarística, que não é, como erradamente se supõe, uma criação eclesial, mas de Cristo, que antecipou na última Ceia o que iria realizar no Calvário, e que, de forma incruenta, se renova sobre o altar, ao celebrar a Missa, cujo carácter sacrificial não pode, portanto, ser posto em causa.
Diz-se ainda: “Por outro lado, com esta concepção sacrificial apareceu o padre-sacerdote que oferece o sacrifício e, consequentemente, o celibato obrigatório e a chaga do clericalismo, já que o padre adquiria um poder divino: o de, como “outro Cristo”, só ele “trazer Cristo à Terra”, realizando o milagre da transubstanciação, só ele perdoar os pecados, decidindo da salvação ou da condenação...”. A confusão é grande entre realidades que, a bem dizer, não têm muito a ver. Mais uma vez, não fala o teólogo, que o não é, mas o comentador religioso. É curioso que se entenda o celibato sacerdotal, ou o poder de absolver em nome de Cristo, como uma manifestação de clericalismo, mas não o facto de um padre se aproveitar dessa sua condição, para apresentar como católicas opiniões pessoais que, na verdade, contradizem o Evangelho e a doutrina da Igreja…
É também muito ambíguo o seu entendimento da presença de Jesus Cristo na Eucaristia: “Jesus está realmente presente na Eucaristia? Sim. Mas é preciso distinguir entre presença físico-coisista e presença real pessoal. Um homem e uma mulher, pela relação sexual, estão fisicamente presentes, mas, se não houver amor, estão realmente ausentes como pessoas. Também pode acontecer que tenham de estar fisicamente ausentes, por motivos de trabalho, por exemplo, mas, se houver amor, continua a presença real entre eles”.
Como não se pode negar a presença de Cristo na Eucaristia, sem se autoexcluir automaticamente da comunhão católica, o autor confessa-a formalmente, mas depois esvazia-a: para ele, com efeito, a presença de Cristo na hóstia consagrada é virtual, porque a compara à presença do ausente na mente e no coração de quem o ama. Ora, desde sempre, a Igreja ensinou que a presença de Cristo na Eucaristia não é simbólica, nem virtual, mas real, verdadeira e substancial. A Eucaristia não representa, ou simboliza, Cristo, mas é Ele próprio, com o seu Corpo, Sangue, Alma e divindade! Assim o tinha dito já São Paulo VI, na encíclica Mysterium fidei.
A veracidade da presença real decorre também dos relatos da instituição da Eucaristia, em que Cristo diz claramente que o pão e o vinho ‘são’ Ele, não que O representam, nem que O simbolizam. O mesmo se diga do discurso de Cristo na sinagoga de Cafarnaum, que não deixa lugar a quaisquer dúvidas a este respeito.
O próprio Paulo afirma o mesmo, quando diz que, quem comunga indignamente, ou seja, em pecado grave, “é réu do Corpo e Sangue de Cristo”, “come e bebe a própria condenação” (1Cor 11, 27.29). A diferença é clara: se alguém publicamente prende fogo a uma fotografia do presidente da República, ofende a sua pessoa e dignidade, mas se incendeia o chefe de Estado, comete um homicídio. Se a Eucaristia fosse apenas um símbolo, ou representação de Cristo, quem a ultrajasse nunca seria réu do seu Corpo e Sangue, mas de uma ofensa ao seu nome e dignidade. Foi, aliás, para desfazer este equívoco que São Paulo escreveu, em termos tão enérgicos, aos cristãos de Corinto, precisamente porque entre eles havia quem pensasse que a presença eucarística era meramente simbólica.
Infelizmente, este texto não se limita a proferir algumas incongruências teológicas, porque termina com um convite verdadeiramente escandaloso: “Na situação de confinamento em casa, porque é que as pessoas, isoladas ou em família, ao participar na Eucaristia pela televisão ou outros meios, não hão-de concelebrar e comungar realmente (…)?” Ao sugerir que qualquer fiel pode validamente celebrar e consagrar a Eucaristia, e depois “comungar realmente” e não apenas espiritualmente, está-se a convidar os fiéis a praticarem um acto que não só seria nulo – a consagração eucarística só pode ser validamente realizada por um sacerdote – como também sacrílego.
E, para que esta falsificação da Santa Missa se assemelhe mais à verdadeira celebração eucarística, chega-se a propor uma incrível encenação: “Assim, frente à televisão, coloque-se na mesa pão e vinho, também uma vela, símbolo da luz de Cristo, acompanhe-se a celebração, escutando a Palavra de Deus, oferecendo o pão e o vinho, símbolos da nossa vida, que pedimos seja transformada e vivificada em Cristo ao serviço da Humanidade inteira. E partilhemos o Pão da Vida e o Vinho da alegria que não tem fim”.
Neste seu artigo, o autor refere que, uma vez, um bispo lhe perguntou: “O que é que se responde a uma criança de 12 anos que, depois de uma procissão do Santíssimo, me veio dizer: ‘Tu não levavas o Jesus, pois não? Tu não podias com Ele!...’”. Disse-lhe: “O que é que se deve responder exactamente eu não sei. Mas sei que se não deve ensinar o que, depois, leva até uma criança a fazer observações dessas.”
Por uma vez, estou de acordo com o P. Anselmo Borges, quando confessa que, manifestamente, não sabe “o que é que se deve responder exactamente”. Mas, deve-se permitir que ensine, em nome da Igreja, quem, como o próprio reconhece, não sabe “o que é que se deve responder exactamente” a quem lhe pergunta sobre as razões da nossa esperança (1Pd 3, 15)?!
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