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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
São João Paulo II, apóstolo da misericórdia
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No passado dia 18, ocorreu o centenário do nascimento de São João Paulo II. O último Papa a ser canonizado pela Igreja foi também quem mais marcou, graças ao seu extraordinário pontificado, a Igreja católica de finais do segundo milénio e início do terceiro milénio da era cristã.
Por ocasião deste aniversário, Joseph Ratzinger, seu sucessor na cátedra de Pedro, que ocupou com o nome de Bento XVI, escreveu, no passado dia 4, uma extensa carta ao Cardeal Stanislaw Dziwisz que, durante quarenta anos, foi o secretário pessoal de São João Paulo II.
Não é fácil resumir um dos mais longos e profícuos pontificados da Igreja católica, dada a abundância de encíclicas, exortações apostólicas pós-sinodais, cartas, mensagens, etc. Por isso, a síntese agora oferecida pelo que foi, durante mais de duas décadas, um seu tão próximo colaborador, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tem um especial valor.
O centro do magistério de São João Paulo II é a doutrina da salvação. Ainda que possa parecer óbvio, por vezes, a emergência de outras questões, como a actual pandemia ou a ecologia, podem subvalorizar aquela que é, afinal, a principal missão da Igreja. Mas o empenho pelo bem espiritual da humanidade não pode ser razão para que a Igreja se desinteresse das questões sociais e políticas que lhe dizem respeito.
Karol Wojtyla, não obstante a difícil situação em que se encontrava a sua pátria e outros países oprimidos por uma ditadura ateia, nunca deixou que essas legítimas preocupações sociais se antepusessem à urgência da missão salvífica, que foi a prioridade do seu pontificado. Curiosamente, não obstante esta centralidade do espiritual, foi talvez o pontificado que teve uma maior transcendência política, na medida em que foi a São João paulo II que se ficou a dever a ‘conversão’ da Rússia e a libertação da Polónia e dos restantes países sob domínio do imperialismo soviético.
Como escreveu agora Ratzinger – já não sendo Papa, não faz sentido referi-lo pelo nome usado enquanto ocupou a sede petrina, nem porventura usar a expressão ‘Papa emérito’, que poderia levar erroneamente a crer que, na Igreja, existem dois Papas – “ao longo de sua vida, o Papa (João Paulo II) procurou ocupar-se pessoalmente do centro objectivo da fé cristã, que é a doutrina da salvação (…). Através de Cristo ressuscitado, a misericórdia de Deus é dada a cada indivíduo. Embora este centro da existência cristã só nos seja revelado pela fé, também é importante filosoficamente, porque se a misericórdia de Deus não fosse um facto, teríamos que encontrar o caminho através de um mundo onde o poder último do bem contra o mal seria incerto. (…) É essencial que todos saibam que a misericórdia de Deus é mais forte do que a nossa fraqueza”.
À consciência da necessidade da salvação, a que é inerente a possibilidade da condenação – outro tópico habitualmente ausente da pregação – importa acrescentar sempre a misericórdia divina. Sem a certeza desse amor compassivo, a consciência do pecado poderia resvalar para o desespero em relação à própria salvação, em vez de propiciar aquela penitência que é gozosa na misericórdia de Deus. De facto, a salvação não pode ser proposta como algo apenas provável, mas que é seguro, se o pecador confiar na misericórdia divina. Por isso, não é de estranhar que São João Paulo II tenha sido também o Papa da misericórdia, tendo até falecido quando já se celebravam as vésperas do segundo domingo da Páscoa, agora também chamado da Divina Misericórdia.
Sobre esta festividade, que tem a sua origem nas revelações feitas a Santa Faustina Kowalsa, é interessante registar que a Congregação para a Doutrina da Fé, então chefiada pelo Cardeal Joseph Ratzinger opôs-se, inicialmente, à sua instituição no segundo domingo da Páscoa: “Desde o princípio, João Paulo II sentiu-se profundamente comovido pela mensagem de Faustina Kowalska, uma religiosa de Cracóvia, que destacou a Divina Misericórdia como o centro essencial da fé cristã e que desejava uma celebração com este motivo. Depois de todas as consultas, o Papa (João Paulo II) escolheu o domingo in albis (Segundo Domingo de Páscoa). Antes de tomar a decisão final, pediu opinião à Congregação da Fé sobre a conveniência desta data. Dissemos que não, pois pensávamos que uma data tão antiga e cheia de conteúdo como a do domingo in albis não deveria ser sobrecarregada com outras menções. Certamente não foi fácil para o Santo Padre aceitar o nosso não. Mas fê-lo com toda humildade e aceitou o nosso não, também uma segunda vez. Finalmente, fez a proposta de manter o histórico domingo in albis, mas nele incorporando a festa da Divina Misericórdia”.
São João Paulo II tinha esta forma de trabalhar: não deixava nunca de pedir a opinião aos organismos competentes, mas depois decidia com toda a liberdade, em função do que entendia ser melhor para o bem da Igreja.
Não obstante os que insistem em supor uma ruptura entre os pontificados de São João Paulo II e do Papa Francisco, o sucessor do primeiro e antecessor do segundo considera que há continuidade entre ambos magistérios, precisamente em relação a esta valorização pastoral da misericórdia divina. Como escreveu Ratzinger: “podemos encontrar a unidade interior entre a mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do Papa Francisco: João Paulo II não é um rigorista moral, como alguns tentam retratá-lo. Com a centralidade da misericórdia divina, dá-nos a oportunidade de aceitar o requerimento moral do homem, embora nunca possamos cumpri-lo por completo. Entretanto, os nossos esforços morais desenvolvem-se à luz da divina misericórdia, que é uma força curativa para a nossa debilidade”.
Se a centralidade da misericórdia é, talvez, a peça-chave de todo o magistério de São João Paulo II, percebe-se então quão providencial foi também o impressionante momento da sua partida para o Céu. Como agora recordou Joseph Ratzinger, “quando João Paulo II viveu os seus últimos momentos neste mundo, começava a celebrar-se a Festa da Divina Misericórdia, depois da oração das primeiras vésperas. Esta celebração iluminou a hora de sua morte: a luz da misericórdia de Deus apresenta-se como uma mensagem reconfortante sobre sua morte. No seu último livro, Memória e Identidade, publicado na véspera de sua morte, o Papa (João Paulo II) resumiu uma vez mais a mensagem da Divina Misericórdia. Assinalou que a irmã Faustina morreu antes dos horrores da Segunda guerra mundial, mas que já tinha dado a resposta do Senhor a este horror insuportável. Era como se Cristo quisesse dizer, através de Faustina: ‘O mal não obterá a vitória final. O mistério pascal confirma que o bem prevalecerá, que a vida triunfará sobre a morte e que o amor triunfará sobre o ódio’.”
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