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Pe. Alexandre Palma
Imaginar o Evangelho

Emaús: «Olhos impedidos» escritos sob folha branca. Logo diluídos em aguarela, como quem passa a ver. Talvez, apenas, por não ser esse o final do texto; por não poder ser este o fim da história. Depressa esses olhos se dissolvem na tinta aguada, e transmutam-se numa súplica: «Fica connosco». Somam-se palavras, como se um coro inteiro conversasse numa mesma página: aproximou-se, habitante-sepulcro, fechados, incapazes, aproximou-se, pão, nova visão, à nossa frente, perceber. Tudo de Emaús concentrado ali, numa folha de papel. Não apenas o que é dito. Também os medos, as dúvidas, a alegria e tudo o mais que, então, ali se vivera. As palavras saltam do texto para a imagem. Não são palavras gritadas sobre o branco da folha. Pelo contrário, são como que sussurradas em aguarela. Ganham assim transparência. São como deveriam ser todas as nossas palavras. Deixam ver. Todas elas, aos poucos, costuradas por linhas de cores, que de uma ponta à outra as percorrem e atravessam. Tal como os discípulos de então, tenta-se assim encontrar o elo que dê algum sentido à estrada de Emaús. De dentro deste diálogo de papel nascem figuras de discípulos. São filhos de todas aquelas palavras. Vemos os seus perfis, nuns casos mais definidos noutros menos. Têm cor própria, mas não bloqueiam a luz. Permitem que, através deles, se veja para lá de si próprios, se veja mais longe.

Foi assim que vi o primeiro dos vídeos produzidos por Mário Linhares e pelo pe. Nuno Branco, SJ. Neste tempo pascal, paradoxalmente vivido em casa, juntaram-se para desenhar a Palavra de Deus. Serviram-se das possibilidades que os meios informáticos hoje colocam ao nosso dispor. De forma síncrona, filmavam-se enquanto desenhavam, de forma coordenada, os Evangelhos de cada Domingo. Mais do que o produto final, encanta-me a beleza do processo. Ofereceram-nos, ao longo destas semanas, autênticas meditações visuais. Conspirando entre si, olhos e ouvidos encheram-se de Evangelho. Foram outros dois discípulos de Emaús, partilhando connosco os seus próprios caminhos pascais. Também eles, dois amigos a falarem sobre Jesus. Também eles, abrindo as janelas de suas casas, convidando para a sua mesa de desenho e para nos alimentar pelos olhos.

Há qualquer coisa de novo nisto. Não que a tradução visual do Evangelho seja coisa recente. Novo é o estilo propriamente contemporâneo do desenho. É fazer do processo, mais que o produto, a obra de arte. Novo é tudo isto ser feito em companhia, não em solidão. É dar também espaço à luta com o texto, inevitável a todo o bom intérprete (e a todo o bom texto). É, sobretudo, tornar a palavra uma imagem e fazer da imagem um texto. Num diálogo em que as palavras bíblicas e as dos seus pintores se entrelaçam. No fundo, conseguiu-se neste projecto algo de que precisamos: imaginar o Evangelho. Imaginar sim, como verbo de acção, ou seja, dar imagem ao Evangelho. Criar imagens que digam o que está no texto e para lá do texto. Porque nós somos seres de palavra (lógicos, porque do lógos). Mas não somos menos seres da imagem. Também esta é linguagem. Não podemos desconhecer este idioma.

Pentecostes. Uma quadrícula metódica de post-it’s sobre fundo branco. Tudo organizado e previsível. Entretanto, um Evangelho plural, dito a múltiplas vozes, cola-se também a este exercício. O texto, escrito letra a letra, vem desarrumar a ordem geométrica. Inscreve-se, enchendo cada pequeno quadrado e criando entre eles uma outra forma de relação. Entretanto, naipes de sopros e cordas de orquestra entusiasmam, dando a tudo isto tons de aventura. De repente os quadrados ganham vida, mudam de sítio. Melhor ainda, passam a escrever um novo texto. As letras ganharam cor e linhas vivas voltam a atravessar o texto. A modulação da orquestra toma agora um registo mais sereno. A cor inunda o texto, tomando conta de tudo. Então, alguns quadrados são retirados, abrindo espaço para que surjam figuras. Por detrás de cada quadrado, afinal, está alguém. Tudo, enfim, ritmado a acordes de final cinematográfico. E o texto bíblico mostra-se o que é: uma enorme janela. É só olhar por ele.

P.S.: os vídeos estão acessíveis em: https://pontosj.pt/video/o-evangelho-desenhado/