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Pedro Vaz Patto
Repensar e corrigir
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No documento de reflexão dos bispos portugueses Recomeçar e Reconstruir, sobre a sociedade a reconstruir depois da pandemia que nos vem atingindo, salienta-se o facto de essa reconstrução ser uma ocasião para repensar o sistema económico e social em que vivemos, sem perder o que ele tem de positivo, mas corrigindo o que ele tem de injusto. Salienta também esse documento que a crise da pandemia nos fez redescobrir a importância do papel do Estado: para superar tal crise, incluindo as suas dramáticas consequências nos planos económico e social. Torna-se agora notória a insuficiência de uma economia assente apenas na busca do interesse individual. Ao mesmo tempo, esse documento não deixa de alertar para a ilusão de pensar que do Estado se pode esperar a resolução de todos os problemas gerados pela crise, desvalorizando a iniciativa e criatividade próprias da sociedade civil. Há que ter presente, também a este respeito, o princípio da subsidiariedade. E de um Estado tão endividado como o nosso não será de esperar (apesar dos apoios europeus que se anunciam) o essencial das iniciativas de combate ao flagelo do desemprego, por exemplo.
A propósito desta exigência de repensar o sistema económico e social no atual contexto, a economista Mariana Mazzucato numa recente conferência organizada pela European Laudato Si` Alliance (plataforma europeia de organizações católicas empenhadas na concretização dos apelos da encíclica Laudato Si`) pôs em relevo a oportunidade que agora surge de um novo relacionamento entre Estados e empresas. Uma vez que muitas empresas irão receber apoios do Estado para enfrentar a crise, esses apoios não deverão ser incondicionados, a eles devem corresponder obrigações justificadas na perspetiva do bem comum. Entre essas obrigações contam-se as relativas à proteção do ambiente e as relativas à fiscalidade. Será incoerente e injusto que uma empresa receba apoios do Estado e a este deixe de pagar, através do recurso aos chamados paraísos fiscais, os impostos que a esse mesmo Estado são devidos, por ser no seu território que são, efetivamente, gerados os rendimentos sobre que deveriam incidir tais impostos.
Os paraísos fiscais na verdade, estão na raiz de uma das mais flagrantes injustiças do sistema económico que nos rege. Permitem que empresas das mais lucrativas paguem, proporcionalmente, menos impostos do que trabalhadores ou pequenas empresas. Privam muitos países incluindo os mais pobres, de receitas necessárias à satisfação de necessidades básicas da população.
No conceito de paraísos fiscais não cabem apenas pequenas ilhas espalhadas pelo mundo com taxas de imposto insignificantes. Os seus malefícios não se relacionam apenas com a falta de cooperação policial e judiciária no combate à criminalidade. Uma comissão do Parlamento Europeu considerou recentemente que devem ser encarados como paraísos fiscais países como a Holanda (sede fiscal de várias empresas portuguesas), o Luxemburgo, a Irlanda, a Bélgica, Chipre, Malta e a Hungria, que atraem, através de regimes fiscais mais favoráveis, empresas que neles não atuam.
Alguns países europeus (a Polónia, a Dinamarca, a França e a Itália) adotaram medidas no sentido de negar apoios no âmbito da crise da pandemia a empresas que recorram a paraísos fiscais. A Comissão Europeia considerou, porém, que, por força do princípio da livre circulação de capitais, não devem, para esse efeito, ser considerados paraísos fiscais outros Estados da União Europeia.
Na verdade, o problema só será superado com a uniformização da legislação fiscal no âmbito da União Europeia, o que exige uma unanimidade até agora difícil de obter, mas podemos dizer que, nesta ocasião de correção das injustiças do sistema que nos rege, seria o momento de pôr fim aos paraísos fiscais.
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