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Guilherme d'Oliveira Martins
Cónego João Rocha…

Amigo da família, sempre o conheci, e lembro bem os tempos em que se formou no Seminário dos Olivais, num momento de muitas esperanças. Eram os ventos conciliares que se anunciavam, na decisão profética do Papa S. João XXIII. Era um tempo de leituras e reflexões. O Espírito soprava onde queria, ouvíamos a sua voz, mas não sabíamos de onde vinha… Sentíamos a força dos sinais dos tempos, mas também sentíamos as suas resistências. Abriam-se horizontes de esperança, mas não poderíamos esquecer os riscos e as provações. A Igreja estava em movimento, para todos. E um jovem como o então Padre João Rocha trazia sinais de mudança. No desporto e na cultura encontrámo-nos no Centro Desportivo Católico. Havia que compreender o mundo. Estava em causa o podermos ser fermento na massa. E nesse período, ainda antes de 1974, houve uma fecunda reflexão sobre a renovação litúrgica, sobre a arte religiosa, sobre as responsabilidades pastorais e sobre o método sinodal, mas também sobre a preparação da democracia que aí vinha. Foi quem nos casou, quem acompanhou a preparação teológica, quem batizou os nossos filhos, quem acompanhou uma família cristã com raízes antigas, aberta aos sinais dos tempos, à liberdade e à diversidade. No dia do nosso casamento ofereceu-nos alguns textos fundamentais de alguém que viríamos a ter como bom amigo, o Padre José da Cruz Policarpo. Quanto à renovação da Arte Religiosa, o Cónego João Rocha foi entre 1970 a 1988 diretor adjunto do Secretariado das Novas Igrejas, e esse foi tema de belas conversas – que recordo hoje ao visitar a Igreja da Portela (cuja construção dirigiu) ou na memória de outros amigos que nos deixaram já, como os arquitetos Diogo Lino Pimentel e João de Almeida. Ainda muito jovens, cedo presenciámos animados debates perante a serenidade determinada do Padre João. Sentíamos a abertura de espírito – líamos Maritain e Mounier, mas também Chesterton, Bernanos, Mauriac e Graham Greene. E depois seguimos o percurso paroquial em S. Mamede (onde encontrávamos outro amigo próximo, o Cónego Samuel Rodrigues), Mercês, Santos-o-Velho, Santa Catarina, Portela e Santa Joana Princesa, deixando nestes últimos dois casos a marca da construção.

No dia em que nos deixou, lembrei os 25 anos da morte do Padre Yves Congar, O.P. e senti a memória de muitos dos ensinamentos comuns nestes tempos de mudança. Lembro o diagnóstico que o dominicano fez perante a indiferença religiosa: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Também para o Cónego João Rocha haveria que compreendê-lo e saber tirar consequências, perante o risco de uma perigosa indiferença que gera irracionalidade e esquecimento da humanidade. Afinal, o que nos será perguntado no julgamento final? Não sobre os gestos mundanos que fizemos, ou sobre as aparências e ilusões, mas sobre o que fomos capazes de fazer em resposta a quem precisou de nós. Um dia o Padre Congar disse: “Estou impressionado e feliz. As grandes causas que procurei servir chegaram ao Concílio Vaticano II: renovação da Eclesiologia, estudo da tradição e das tradições, reforma da Igreja, ecumenismo, laicado, missão e ministérios”. De facto, o regresso às fontes bíblicas, patrísticas e medievais permite considerar as questões teológicas e eclesiais na sua essência e dentro da tradição mais antiga e fecunda – percebendo que o sábado foi feito para as pessoas e não as pessoas para o sábado. Quantas vezes o Cónego João Rocha nos pedia, por isso, para voltarmos a ler e a seguir os Atos dos Apóstolos na busca da pureza das origens.

Infelizmente, persiste a indiferença e a facilidade relativamente à tradição teológica e aos fundamentos litúrgicos. E o Cónego João Rocha foi sempre humana e pedagogicamente claro nesse domínio. Ecumenismo não pode confundir-se com sincretismo religioso, diálogo religioso pressupõe conhecimento essencial e complexo. O exemplo é a marca fundamental do amor cristão. Como assegurar que a teologia esteja ao serviço do povo de Deus? E eis como as constituições conciliares “Lumen Gentium” e “Gaudium et Spes” têm de estar em ligação estreita. E que é a Igreja serva e pobre senão a Igreja das Bem-Aventuranças? Por isso absolutizar qualquer realidade contingente é negar a compreensão de Deus, o exemplo de Jesus Cristo e a eminente dignidade da pessoa humana. Vou reler os Atos dos Apóstolos e lembrar-me de tanto que falámos, de tudo que significa um caminho de fé, esperança e amor.