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Pe. Alexandre Palma
Corpos intermédios

Houve tempos mais amigos da moderação. O equilíbrio chegou-nos exaltado sob forma de ditado: «no meio está a virtude». Aristóteles situara já a «moderação» entre o elenco das virtudes e declarara o «modo de ser intermédio […] louvável em todas as coisas» (Ética nicomaqueia, 1109b). Todavia, em diversos quadrantes da nossa vida, a moderação é hoje, com frequência, percebida como tibieza, o equilíbrio como tacticismo, uma posição intermédia como ausência de convicções. Compreensivelmente, estes não geram, de facto, as mesmas paixões que lógicas mais extremadas. Numa sociedade mediatizada, cativa da sensação, são necessárias cores mais vincadas para capturar a atenção.

Quero, contudo, referir-me a um certo tipo de «meio» que atravessa uma crise evidente: os chamados «corpos intermédios». O conceito vem das análises sociais e políticas e teve também um acolhimento implícito na célebre encíclica social de Leão XIII, a Rerum novarum (1891). Por «corpos intermédios» entendem-se as instituições que, de alguma forma, se situam entre os indivíduos e as estruturas mais elevadas da organização social. São mediações entre ambos. Tipicamente este conceito tem uma leitura política. Ele descreve as instituições sociais que preenchem a distância que separa o cidadão e o Estado. Autarquias locais ou associações da sociedade civil tendem a desempenhar, precisamente, esse papel. Mas ele pode com propriedade ser dito também de outras dinâmicas sociais. Por exemplo, sindicatos ou ordens profissionais serão «corpos intermédios», mediando as relações entre trabalhadores e empregadores, e entre classes profissionais e o Estado. Também na vida eclesial se podem reconhecer «corpos intermédios», isto é, estruturas de mediação entre crentes e a Igreja como um todo. Associações de fiéis, por exemplo, fazem esta ponte. Tal como grupos de cristãos são um «corpo intermédio» para a vida paroquial; a paróquia para vigararia; a vigararia para a diocese; a diocese para a Igreja universal. Tantas mediações necessárias para que o corpo eclesial não seja dilacerado pela distância entre os seus extremos.

São todos estes «meios» que hoje se mostram desgastados e, portanto, cada vez menos capazes de realizar a sua função. As razões para tal serão várias, complexas e impossíveis aqui de elencar de forma exaustiva. Mas, entre essas razões, poder-se-á falar, por um lado, da individualização e polarização das nossas sociedades. A multiplicação de vozes torna mais exigente a tarefa de as mediar. Por outro lado, a comunicação, cada vez mais directa, faz bypass a estes «corpos intermédios», deixando-os com frequência fora de jogo, sem voz nem lugar. E, paradoxalmente, a crise destas mediações confirma a sua utilidade. Dito de outro modo, as nossas sociedades (civis e eclesiais) estarão mais debilitadas precisamente nos pontos em que estes «corpos intermédios» vão fraquejando: na dificuldade de dialogar, que será sempre mais que esgrimir argumentos ou cavar polémicas; na dificuldade de antepor o bem comum a todos os demais; na dificuldade de respeitar outros níveis de decisão para lá do binómio redutor entre decisão individual e decisão central (aquilo que, na Doutrina Social da Igreja, se chama «subsidiariedade»). Porque precisamos de diálogo, bem comum e subsidiariedade, precisamos de «corpos intermédios». Apesar de tudo, a moderação continua a ser necessária. Não apenas como virtude. Também como instituição. Precisamos desta «terra média». Precisamos de a reinventar.