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Pe. Alexandre Palma
Máscaras

As máscaras sempre disseram muito sobre nós. Elas são artefactos antigos. Tão antigos quanto o somos nós. As máscaras sempre estiveram associadas a importantes áreas da actividade humana. O seu uso disseminou-se em contextos religiosos, dando forma e presença às divindades veneradas. Enquanto objectos rituais, elas vêm também fazendo parte integrante das grandes celebrações e interrogações da vida. Talvez o teatro seja disso a expressão mais eloquente. Elas tornam possível experimentar um mundo diferente, nem que seja de forma pontual, no palco ou rua. Na festa romana de Saturnalia, o uso da máscara tornava possível uma suspensão da ordem social. Escravos e senhores trocavam de papéis. Este é apenas um de muitos exemplos possíveis. Carnavais e bailes de máscaras prolongam até hoje essa sua antiga função. Elas materializam o arquétipo da beleza, mas também do grotesco. São igualmente objectos protectores, desde logo na guerra ou no desporto. Mais fundo do que isso, são objectos protectores da própria identidade e intimidade. Já no passado, eram objectos terapêuticos, em sociedades profundamente marcadas por mentalidades mágicas, pelo rito e pelo mistério. O mundo das máscaras não é apenas o da figuração da nossa realidade. É também o da sua transformação. É espaço aberto para pensar outros mundos. Em tudo isso, campo largo para reflectirmos sobre quem somos e podemos ser. Nos seus múltiplos usos e sentidos, as máscaras são, no fundo, declinações de uma pergunta que em nós nunca se silencia: o que significa ser humano?

O presente contexto pandémico deu novo protagonismo à máscara. Não importa com que espírito a usemos, seja de forma convicta ou seja de forma contrariada. Elas marcam o nosso dia-a-dia e marcarão a nossa memória destes dias. Elas servem de protecção, mas surgem-nos como uma imposição. São um desconforto trazido no rosto. Uma barreira na nossa comunicação, para a necessidade de nos dizermos e de nos escutarmos. Um encobrimento que só permite aceder a meios rostos. Assim revelamo-nos apenas e só pela metade. Não admira, pois, que nos libertemos destas máscaras sempre e logo que possamos. Não admira, pois, que a ideia de máscara tenha também na nossa cultura uma carga negativa e pesada. Não usar máscaras é, neste sentido, sinónimo de verdade, transparência e integridade.

Mas a história é uma mestra infinita. Mostra-nos que a questão é ainda mais complexa do que isto. Paradoxalmente, a máscara, aquilo que hoje experimentamos como prisão, foi aquilo que noutros contextos tornou possível a liberdade. Mais ainda, que transformou a nossa identidade e esteve na base de um dos maiores contributos do cristianismo à cultura. Para os velhos gregos, a vida era um jogo mais ou menos determinado. O destino regia tudo e todos, humanos e inclusivamente deuses. Inflexível, dele ninguém escaparia. Mas havia um lugar onde o destino era abertamente desafiado: o teatro. A máscara usada pelo actor era mais que mero adorno. Ela fazia nascer personagens e, assim, outras possibilidades de vida, outras teias de relação. Era a possibilidade de se ser coisa diferente daquilo que o destino prescrevera. De lhe fazer frente e, assim, de dele se libertar. Não espanta, portanto, que tenha sido aí, ao teatro e à máscara, que o cristianismo tenha recorrido para dizer algo de si. Sob o imperativo de se traduzir, foi à máscara grega que recorreu para inventar a noção de pessoa. Esta, em primeiro lugar, para dizer a liberdade substancial: Deus. Depois, para dizer o que, segundo o Evangelho, é a vida: liberdade só possível no amor. Para dizer o que somos nós: pessoas, ou seja, relações. Talvez precisemos de voltar a olhar para a máscara sob este outro ângulo. Não apenas para a suportarmos no dia-a-dia, mas, sobretudo, para recordarmos quem somos. Mesmo que seja à custa de uma experiência tão paradoxal.