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“Sinto que nada ou pouco acontece sem uma conversão do coração”

O padre João Lourenço, sacerdote franciscano, analisa a encíclica ‘Fratelli tutti’ e considera que a inspiração do Papa Francisco no Santo de Assis “vai para além da opção de vida franciscana, pois quer incluir aqui todos os homens, designadamente os mais fragilizados e os povos mais vulneráveis”. Em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE, este professor de Teologia denuncia ainda um “mal social” que gera decisões “em função dos interesses” e não da “promoção do bem comum”.

 

As “falsas seguranças” reveladas pela pandemia, tal como afirma o Papa Francisco na ‘Fratelli tutti’, vieram mostrar que há um longo caminho para percorrer no que diz respeito a um caminho em conjunto que não é somente a soma do que cada um pensa ou tem. No seu entender, qual o contributo que este documento pode trazer para essa caminhada?

A questão que me é colocada é, efetivamente, uma daquelas que percorre o texto do Papa, podemos dizer, ‘de fio a pavio’. É, aliás, o tema central da análise que Francisco faz à sociedade atual, destacando o facto de as nossas construções sociais, políticas e económicas assentarem todas em alicerces falsos, porque têm sido construídas a partir do princípio dos interesses pessoais, políticos, corporativos e de grupo, e não em função do ‘bem comum’. Este tipo de construções são falácias permanentes que vão agravando a condição humana, como também refere o Papa (n.º 12), pois faltam-lhes alicerces sólidos, fundados no amor e em princípios éticos que emprestem vida e dignidade a essas formas de construção social. O Papa destaca isso ao longo do seu texto, designadamente na primeira parte, em que se debruça sobre o atual estado da humanidade, falando do ‘desconstrucionismo’ em que se pretende organizar a sociedade a partir do zero, ou seja, dito por outras palavras, a partir de individualismos sem conteúdo. Já na ‘Laudato si’’ o havia feito. Então, a incidência da sua palavra convergiu para o estado do mundo, visto a partir de fora: questões climáticas, migrações, preservação da natureza e da ‘mãe terra’, a questão da água disponível, etc. Agora, a palavra de Francisco incide mais na dimensão dos valores que presidem ou que estão ausentes das relações humanas. O verdadeiro centro deste texto é o Homem na sua dinâmica relacional. É muito rica esta análise do Papa, pois ela vai ao fundo das questões e toca num ponto essencial: que homem estamos a construir, que sociedade vai emergir daqui, que valores nos propomos viver? Para ser sincero, sinto que estamos numa fase cruel da nossa história humana: se não se proceder à inversão de marcha, se não houver um regresso às ‘fontes’, se não se repensar o caminho e a respetiva meta, o percurso não tem retorno, o que será dramático. Há aqui um tópico também muito caro ao Papa: a ausência de sentido histórico – não aprendemos com o passado, o passado próximo e, por isso mesmo, não construímos com futuro, com horizonte; não há um projeto de esperança a ‘longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum’, pois tudo acaba no marketing do imediato, do consumo efémero, da miopia que nos acompanha.      

 

Como franciscano, o que mais o surpreendeu na encíclica ‘Fratelli tutti’, que foi escrita a partir da inspiração na vida de São Francisco de Assis?

Desde os primeiros passos do seu pontificado, o Papa faz esta constante aproximação à figura de São Francisco, dando sentido e centralidade a várias das intuições do Santo de Assis. Uma que está sempre presente na palavra do Papa é a fraternidade. No entanto, o Papa alarga e dá sentido a uma ‘fraternidade universal’ que se traduza em processos de comunhão e solidariedade entre os povos, as instituições internacionais, os grupos sociais, as gerações. Não se trata apenas de uma fraternidade proposta e aceite a partir da ‘opção de vida’. Para o Papa, esta fraternidade é um imperativo social, que abarca toda a sociedade e não é apenas uma opção de vida, como São Francisco a propunha aos seus seguidores. Eu atrevo-me a dizer que o Papa se inspira em São Francisco sem dúvida, mas a abrangência que ele confere aos seus textos, e não apenas só no que a esta encíclica diz respeito, vai para além da opção de vida franciscana, pois quer incluir aqui todos os homens, designadamente os mais fragilizados e os povos mais vulneráveis. Não tem já a ver com uma centralidade cristológica, como é a intuição de ‘il Povorello’ de Assis, mas sim com uma perspetiva mais social e política do mundo global. De notar que esta centralidade do Papa não tem apenas a ver com as suas propostas em termos de futuro, em perspetivas de construção da sociedade; ele aplica-a já na análise que faz à sociedade, destacando que os grandes males provêm daqui – da ausência de um projeto de fraternidade universal. A sua grelha de leitura está precisamente aqui. Neste sentido, posso dizer que me apraz bastante esta forma do Papa ler e analisar a nossa sociedade. Não podemos, mesmo dentro da Igreja e das instituições religiosas, sejam elas de que nível for, continuar a proceder como se nada se passasse, a ‘assobiar para o lado’, como vemos que acontece. À luz do diagnóstico que o Papa faz, sinto que, na Igreja, não nos podemos esconder: ‘o fermento, mesmo misturado na grande massa, não pode deixar de se mostrar sem perder o seu vigor’.

 

Ao longo de todo o documento, o Papa Francisco retoma o apelo para que se passe de uma “fraternidade abstrata” a uma “fraternidade concreta”, uma fraternidade que tome “contacto com as feridas”. Quão determinante pode ser esta atitude para superar a crise originada pela pandemia?

Creio que todos pressentimos que as ‘feridas’ da nossa sociedade são muito mais profundas e alargam-se muito para além da pandemia; esta crise apenas contribuiu para pôr a descoberto uma situação que de si era já dramática, tanto em termos sociais como éticos e de horizonte. Diria mesmo que a pandemia veio obrigar-nos a olhar o sol, a realidade envolvente, sem a ‘peneira’ que muitas vezes usamos para minimizar as situações que não queremos enfrentar. Além disso, a ferida, como esta encíclica bem o faz notar, vai muito para além da pandemia e não vai curar quando a pandemia passar, a não ser que se reajustem processos, que se mudem procedimentos, que haja um regresso aos verdadeiros valores éticos e humanos. O vírus que corrói a nossa sociedade está muito para além do Covid-19. Sem haver esta mudança, a pandemia vai servir, uma vez mais, como aliás já sucedeu com outras situações análogas ao longo da nossa história recente, para adiar soluções e desculpar a inação das instituições transnacionais e justificar os egoísmos dos grupos e das corporações de interesses, como aliás verificamos todos os dias, salvo honrosas exceções, como sucede por exemplo com vários núcleos dos profissionais de saúde. O grande temor é exatamente este: a pandemia pode passar, mas as feridas profundas vão continuar abertas, as desigualdades, como refere o Santo Padre, vão manter-se e podem mesmo agravar-se, se não houver de facto uma transformação social e pessoal. Como franciscano, sinto que nada ou pouco acontece se não houver uma conversão do coração e é isso que pode suceder após a pandemia.  

 

O Cardeal D. José Tolentino de Mendonça, num texto sobre a mais recente encíclica do Papa Francisco, publicado na Revista E, do Expresso, afirma que “da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, as nossas sociedades integraram as duas primeiras, mas deixaram de fora a fraternidade como se fosse um assunto estritamente privado, sobre o qual não é possível construir um consenso social”. Considera que esta encíclica pretende contribuir para um novo pensamento social e responsabilizar também os Estados, através dos seus agentes políticos, nesse objetivo?

Estou em perfeita consonância com esta análise do Cardeal José Tolentino no que diz respeito ‘à tríade’ que refere. Penso igualmente que esta encíclica vai fortalecer o que podemos chamar de pensamento social, alargando a sua dinâmica e incentivando os ‘agentes sociais’ a reforçar o seu empenho e os seus compromissos. Todavia, creio que há hoje um mal social que vai para além destas três dimensões aqui referidas, que é a irresponsabilidade social e pessoal dos nossos agentes políticos, dos pensadores sociais e dos decisores transnacionais. Tudo hoje é exercido como tarefa e pouco ou nada como missão. As decisões são tomadas em função dos interesses e não de objetivos que visem a promoção do bem comum e dos mais desfavorecidos. A formação política dos governantes e dos legisladores é feita, hoje em dia, nas ‘escolas’ dos partidos onde impera não a ética, mas os interesses e as estratégias de grupos e as formas de assalto ao poder. A falta de princípios de gratuidade, de entrega, de serviço e de missão são hoje notórios e estão à vista de todos. Não se trabalha para melhorar as estruturas sociais, mas para servirem-se dessas mesmas estruturas em proveito próprio, promovendo o compadrio e, muitas vezes, a corrupção e a opressão sobre os povos. O não assumir eticamente a responsabilidade pessoal, tentando tudo para ludibriar os valores éticos e os deveres sociais, faz parte da ‘cartilha’ de muitos dos nossos agentes públicos. O Papa fala da falta de uma verdadeira política de serviço e isso deve-se, em boa parte, aos processos formativos e de recrutamento dos nossos agentes políticos. Como todos sabemos, os Estados assumem o que os seus agentes assumem; o rosto dos Estados é o rosto daqueles que governam, tanto ao nível da legislação como das decisões. Ora, sem uma verdadeira formação ética, não há Estados nem organizações internacionais que sirvam a causa dos povos e possam combater a corrupção, o compadrio e o terrorismo, para além de outras chagas que continuam a minar a ‘saúde e o bem-estar’ das populações. Por isso, para mim, o grande mal está logo na raiz: a falta de uma verdadeira formação para a responsabilidade pessoal e a transparência ética. No caso português, sem querer fechar ou apropriar o âmbito da encíclica ao nosso universo, a situação é alarmante e tende a piorar. Basta olhar para os processos formativos dos agentes públicos do amanhã.

 

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Papa Francisco é um pastor fascinado pela ‘categoria do encontro’

No último capítulo da ‘Fratelli tutti’, o Papa Francisco destaca a importância do papel das várias religiões para a “construção da fraternidade” e revela que esta encíclica foi motivada após o encontro de Abu Dhabi, em 2019, onde assinou, juntamente com o Grande Imã Ahmed Al-Tayyeb, um documento sobre a fraternidade humana. Que importância tem este compromisso? O que pode significar este exemplo?

Devido ao impacto deste encontro no que diz respeito às relações entre o cristianismo e o islamismo, designadamente sobre a presença franciscana na Terra Santa – uma realidade que me é muito cara –, este encontro foi de facto um passo muito importante. Diria mesmo que não é apenas e só pelo documento então assinado sobre a ‘construção da Fraternidade humana’, mas também por aquilo que ele representa: ele dá continuidade àquele encontro marcante que decorreu há oito séculos (1219), em Damieta, durante a V Cruzada, entre São Francisco de Assis e o Sultão Malik al-Kamil do Egito, encontro esse que permitiu a presença franciscana na Terra Santa e o cuidado dos Lugares Santos. Este encontro do Papa em Abu Dhabi tem uma profunda carga histórica e abre um novo horizonte de esperanças, não apenas no que diz respeito ao diálogo e à compreensão inter-religiosa, mas essencialmente no que permite vislumbrar como conjugação de esforços para construir pontes e harmonia fraterna entre os povos (n.º 285). O Papa Francisco é um pastor fascinado pela ‘categoria do encontro’, da ‘proximidade’, da abertura ao outro, ao diferente. São gestos, são momentos proféticos que abrem novos horizontes, mesmo que estes não se vislumbrem no dia seguinte nem se apresentem fáceis. O encontro de São Francisco, em Damieta (1219) também não foi um encontro de grande aparato social, talvez hoje não fosse noticiado nos grandes meios de comunicação social e, de certeza, que não abriria os telejornais das grandes cadeias de comunicação social. Todavia, as suas repercussões têm oito séculos de história, uma caminhada feita de aproximações e, por vezes, também de recuos. No entanto, temos os testemunhos históricos que marcam a presença cristã na Terra de Jesus, que percorreu todo o império Otomano, que conseguiu recuperar e refazer os espaços da história da salvação e que venceu obstáculos quase intransponíveis. Numa situação histórica como é esta que hoje se vive, onde as tensões religiosas assumiram novas formas, em alguns setores, de radicalismo, só por si, o gesto do Papa é já um sinal de esperança e da parte do islamismo é uma porta que se abre em ordem ao trabalho comum em prol da Fraternidade humana, na luta pelas causas comuns da paz e da justiça. Esperemos que este encontro tenha ecos e profundas ressonâncias entre os fiéis dos dois credos.

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