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Guilherme d'Oliveira Martins
Compreender que não estamos sós

A leitura da encíclica “Fratelli Tutti” obriga-nos a refletir sobre o humanismo universalista. Num tempo em que há demasiados apelos ao fechamento das sociedades e à ilusão de que há soluções baseadas na autossuficiência e nos egoísmos, o Papa Francisco recorda o encontro que teve com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, no qual foi afirmado o relacionamento entre Ocidente e Oriente como uma necessidade indiscutível, para que todos se possam enriquecer com a civilização do outro mercê da troca e do diálogo das culturas. O Ocidente pode, assim, encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente pode encontrar na civilização do Ocidente elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural (Cf. FT, 136) De facto, importa considerar as diferenças religiosas, culturais e históricas, componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; considerando o respeito dos direitos humanos, como modo de garantir uma vida digna para todos. E a causa da paz obriga a entender a capacidade de pensar não só como sociedade ou país, mas também como família humana. De facto, os nacionalismos fechados caem na tentação de pensar que podem ganhar com a ruína dos outros. Contudo, a identidade que se fecha empobrece-se e perde no longo prazo. De facto, quem se fecha não se protege, antes torna-se vulnerável e cria fatores de instabilidade. Por exemplo não devemos ver o estrangeiro ou o migrante como uma ameaça, que nada oferece. E não podemos pensar que os pobres são perigosos ou inúteis e que os poderosos, generosos benfeitores.

O Papa afirma que a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve sujeitar-se aos ditames e ao paradigma da eficiência tecnocrática. «Precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspetos da crise». E a encíclica defende uma «política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas». (FT, 177). Só o respeito por todas as pessoas pode salvaguardar o bem comum, como fator de verdade e de justiça. Eis por que razão o valor da fraternidade deve determinar um «diálogo social» autêntico, que pressuponha a capacidade de respeitar o outro e o diferente. «Num verdadeiro espírito de diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria». O debate público, se verdadeiramente der espaço a todos e não manipular nem ocultar informações, pode tornar-se um estímulo constante, que permite alcançar a verdade ou, pelo menos, exprimi-la melhor. Impede que os vários setores se instalem, cómodos e autossuficientes, na sua maneira de ver as coisas e nos seus interesses limitados. Pensemos, nesta perspetiva, que «as diferenças são criativas, criam tensão e, na resolução duma tensão, está o progresso da humanidade» (FT, 203).

«O relativismo não é a solução. Sob o véu duma presumível tolerância, acaba-se por facilitar que os valores morais sejam interpretados pelas conveniências da hora. Se, em última análise, «não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, (…) não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes (…). Quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar» (FT, 206). Eis o que está em causa: o pluralismo pressupõe que haja liberdade de pensamento, livre circulação de ideias e compreensão mútua. E assim, numa “sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional”. Mesmo quando os reconhecemos e assumimos através do diálogo e do consenso, vemos que estes valores basilares estão para além de qualquer consenso, reconhecemo-los como valores transcendentes aos nossos contextos e nunca negociáveis. Se a leitura da encíclica “Fratelli Tutti” corresponde, naturalmente, a uma continuidade reflexiva que se articula “Lumen Fidei” e “Laudato Si’”, o amor cristão pressupõe a compreensão da nossa imperfeição e a exigência de uma fraternidade, que tem de partir da vivência da nossa relação com os outros. A oração do Pai Nosso leva-nos a uma partilha de compromissos, as Bem-Aventuranças ao desprendimento, a noção de Próximo ao impulso do Samaritano. Mas a resposta do Filho do Homem é claríssima: Tive fome e deste-me de comer; sede e deste-me de beber, nu, vestiste-me…