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Maria José Vilaça
O QUE É SER HUMANO: realidade vs ideologia
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Vivemos estes últimos meses marcados por várias notícias que merecem alguma reflexão. Desde as eleições nos EUA até ao debate sobre a Eutanásia e passando pelas declarações do Papa no documentário Franciscus. Estas últimas deram origem a inflamados debates de opinião, dentro e fora da Igreja. Cada um puxa para onde lhe convém ou para onde gostaria que o tema evoluísse. Certo é que, no que diz respeito ao tema das uniões homossexuais, nada de novo aconteceu ou está para acontecer.
Houve, porém, um tema que ninguém tocou, exceto o próprio Papa e algumas pessoas que não chegaram a ser ouvidas. E refiro-me ao sofrimento das pessoas que um dia descobrem que têm atração pelo mesmo sexo e também às suas famílias. O Papa, numa outra altura, até afirmou que, quando isso acontece numa família, os pais têm obrigação de procurar profissionais para ajudar o/a jovem a trilhar o seu percurso de auto identificação, porque é muito possível que velhas feridas emocionais ou até um contacto prematuro com a pornografia possam estar a criar neste jovem, sentimentos não desejados de atração pelo mesmo sexo. Queria, por isso, recordar a esta minoria que vive as suas dificuldades de orientação sexual no segredo e na intimidade e muitas vezes com medo de recorrer a um profissional, que o Papa se preocupa com eles. Para mim são verdadeiros heróis.
Vejamos a realidade para a qual Jesus aponta na resposta à pergunta dos Fariseus sobre o divórcio: “No princípio não era assim” (Mt 19, 3ss). Olhando para esta direção, verificamos que no princípio, a primeira experiência que o homem tem de si próprio é a de que é um corpo e com ele se manifesta. O corpo revela a pessoa, como dizia São João Paulo II. E a segunda experiência que a humanidade tem em relação ao seu corpo é de que ele existe em duas formas, ou seja, com as características diferenciadoras da masculinidade e da feminilidade. Com esta experiência original o homem passa da solidão de ser único entre a criação, para a unidade que pode realizá-lo. Pode parecer contra revolucionário citar a Bíblia… mas este é o verdadeiro significado da expressão de Adão quando se deixa maravilhar com Eva “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne” e podemos imaginar o que lhe ia na alma: por ela eu deixarei a minha familia e com ela serei uma só carne e juntos faremos uma nova familia. E se, como sabemos, Adão e Eva não são personagens históricos, não deixam de ilustrar o que a humanidade é chamada a ser e aquilo que todos subjetivamente experimentamos nas nossas vidas.
Daqui só podemos concluir que a sexualidade é binária e por isso a Igreja nunca poderá mudar a doutrina sobre o matrimónio. Muito antes de ser um sacramento, o matrimónio já existia e foi por causa da sua natureza que estamos hoje aqui a discutir tudo isto. Chama-se a isto a lei natural e é esta a lei que a Igreja segue. Digamos que a Igreja não inventou nada de novo! Limitou-se a observar a realidade objetiva e a experiência subjetiva da humanidade e seguir essa realidade como algo que nos é dado, como missão e destino.
Aqui entra o verdadeiro problema que ciclicamente consome as notícias. É que há um grupo substancial de pessoas que, desde o tempo em que o homem resolveu que podia viver sem Deus e, portanto, sem agradecer a sua existência ao Criador, tem vindo a tentar organizar a sociedade com modelos alternativos. Temos visto que a coisa acaba por correr mal. Mas mesmo assim a insistência é grande e atualmente a ideia que pretendem impor é que a sexualidade não é binária, mas fluida. Ou seja, que o corpo (e, portanto, o sexo) com que a pessoa nasce, não revela a pessoa porque esta pode escolher a qualquer altura qual o sexo que quer ter e qual a orientação sexual que prefere.
Também foi o Grande Papa João Paulo II, que o Papa Francisco tanto cita e que até elevou Bergoglio a Cardeal, que nos ensina que o facto de termos sido criados com duas formas distintas de ser – homem e mulher – nos diz que somos feitos à imagem do Deus criador, e que a forma como nos relacionamos sexualmente tem duas dimensões inseparáveis – unitiva e procriativa – que espelham este Deus que é Amor e Vida.
Nestes tempos ideologicamente marcados pela teoria do género, quando a realidade não está conforme à ideologia, tenta-se desesperadamente mudar a realidade. Daí esta procura das palavras do Papa que podem indicar um vislumbre de aproximação à ideologia. Mas o Papa Francisco tem sido bem explicito a respeito da essência do ser humano e até condena também muito claramente esta “colonização ideológica” a que estamos sujeitos. Quase que apetece dizer: desistam… não vale a pena… não vai acontecer! A Igreja acolhe, acompanha, trata das feridas, mas faz tudo isto porque sabe que cada homem e cada mulher é criado à imagem de Deus e por isso só pode ser amado. E dizer a verdade é a maior forma de Caridade para com uma pessoa.
Cito João Paulo II, numa das suas audiências sobre o plano de Deus para o amor humano. Foi no dia 16 de janeiro de 1980, não faz muito tempo, e faz-nos parar para olhar a beleza do amor humano:
“Assim, o homem, (…) encontra a mulher e ela encontra-o a ele. Deste modo ele acolhe-a interiormente; acolhe-a tal como ela é, querida por si mesma pelo Criador, como ela é constituída no mistério da imagem de Deus, através da sua feminilidade. E reciprocamente, ela acolhe-o a ele do mesmo modo, como ele é, querido por si mesmo pelo Criador e por Ele constituído mediante a sua masculinidade. Nisto consiste a revelação e a descoberta do significado esponsal do corpo. (…) Por um lado, este significado indica uma capacidade particular para exprimir o amor, em que o Homem se torna dom. Por outro lado, corresponde a isso a capacidade e a profunda disponibilidade para a afirmação da pessoa, isto é, literalmente, a capacidade de viver o facto de que o outro -a mulher para o homem e o homem para a mulher - é, através do corpo, (…) alguém escolhido pelo Amor eterno.” (…) Mesmo que este significado esponsal do corpo sofra muitas distorções, manter-se-á sempre o nível mais profundo, que exige ser revelado em toda a sua simplicidade e pureza e, manifestar-se em toda a sua verdade, como sinal da Imagem de Deus.”
É por essa razão que escrevo hoje, não sobre o que o Papa disse ou deixou de dizer, mas sobre esta verdade que fundamenta a doutrina da igreja, tornando-a imutável, e que ecoa nos nossos corações, mesmo que naveguem ao sabor do vento, sem rumo nem direção, em busca de uma salvação, que na verdade já aconteceu.