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Pe. Alexandre Palma
Um Advento com Nick Cave

Este ano o Advento começou para mim por meados de Setembro. Não foi engano nem precipitação. Por essa altura redescobri o último álbum do australiano Nick Cave: Ghosteen (2019). Desde então dou comigo a ouvi-lo repetidamente. O álbum surpreendeu alguns por incorporar, aqui e além, sonoridades psicadélicas. Mas nele persiste um negrume próprio da obra de Cave, típico do rock gótico onde certas catalogações o inscrevem. A gravidade da sua voz parece tê-lo destinado a criador de ambientes sombrios, mas densos. Este tom pesado intensificou-se talvez, segundo quem é mais perito do que eu nestes assuntos, com a morte precoce de um filho, Arthur com apenas 15 anos. Acerca dos abismos interiores dessa perda Cave tem falado um pouco num blog onde dialoga com os seus públicos e assim, pressente-se, vai também limpando a alma e fazendo terapia. Não é, seguramente, um acaso que ele tenha nomeado esse lugar de conversa Red Hand Files, inspirando-se no célebre poema do inglês John Milton: Paradise Lost. A «mão (direita) vermelha» é a mão do castigo divino, indicativo do «paraíso perdido». Deus é, de facto, uma referência omnipresente na obra de Cave. «A minha vida – reconhece – está dominada pela noção de Deus, seja da sua presença seja da sua ausência». Mas Deus é para Cave mais uma interrogação que uma afirmação. Em «Into my Arms» (1997), uma das grandes canções de amor dos nossos tempos, declarava não acreditar num «Deus intervencionista». Mais recentemente descreveu Deus como sendo para ele um «trabalho a decorrer (work in progress)».

Mas, de Ghosteen, dou comigo a conversar intensamente com uma das suas faixas: Waiting for you. Foi ela que iniciou em mim este Advento antecipado. Ela tornou-se para mim uma espécie de hino litúrgico. Canto-a mudamente na minha cabeça. Sobretudo, ela fez-me olhar o Advento como tempo do regresso (e não apenas da vinda). Como se insinua no título, em Waiting for you canta-se a espera. Uma espera, aliás, suplicantemente repetida, com uma tonalidade que não deixa dúvidas: vem do fundo da alma. O cenário desenhado não é confortável, mas nem por isso deixa de ser uma vigorosa parábola da presente condição humana: uma viagem nocturna; o vento frio da noite; a necessidade que temos, por vezes, de permanecer calados; sobretudo, a companhia de alguém que é uma «âncora» e por quem se suplica. De repente fala-se também de um padre que corre pela igreja, do calendário que acelera o seu curso e de um «louco (freak)» de Jesus a gritar na rua que Ele está a regressar. E é então que essa espera se define: «estou à espera que regresses». De facto, logo assim termina a música, repetindo como num eco: que regresses.

Esta minha estranha conversa com Nick Cave tem-me feito pensar no Advento como tempo do regresso. Porque Jesus já veio, o que pedimos é que Ele regresse até nós. Cada dia. E no dia dos dias. Porque nós já tocámos o segredo da vida, o nosso desejo só se resolve se aí regressarmos também. E para isto não é preciso muito, se for verdade um outro aforismo cantado por Cave: «por vezes, um pouco de fé pode ir bem, bem longe».