Lisboa |
Ação de Natal da Comunidade Vida e Paz
“São as nossas pessoas”
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Foi um “Natal diferente” aquele que a Comunidade Vida e Paz proporcionou aos seus convidados. Em tempo de pandemia, a instituição tutelada pelo Patriarcado de Lisboa não pôde organizar a tradicional festa, mas não quis deixar de dar um “conforto especial”, nesta época natalícia, às pessoas em situação de sem-abrigo.


Os primeiros raios de sol começam a fazer-se sentir na cidade de Lisboa. É manhã bem cedo, do dia 18 de dezembro, e duas carrinhas da Comunidade Vida e Paz chegam à zona da Gare do Oriente, no Parque das Nações. Os voluntários da instituição tinham então de preparar tudo para receber os convidados para a Ação de Natal, a iniciativa que ia procurar dar um Natal melhor às pessoas em situação de sem-abrigo. A hora estava marcada: a partir das 9 horas da manhã, os convidados iriam começar a chegar. “Este ano, é um Natal diferente, mais frio, mais distante, em virtude daquilo que vivemos, mas temos de aceitar, com algum estoicismo, e, juntos, havemos de atravessar este momento. Mas de facto, este ano, é tudo diferente. Para dar uma ideia, estamos aqui, na Gare do Oriente, onde hoje vamos receber 14 pessoas. Numa sexta-feira normal, de Festa de Natal, receberíamos 400 a 500 pessoas… Enfim, este ano, é o que podemos”, salienta, ao Jornal VOZ DA VERDADE, o voluntário Guilherme Fontes. Há 15 anos que este jovem, de 32 anos, é voluntário na Festa de Natal com as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, promovida pela Comunidade Vida e Paz. Este ano, era um dos coordenadores-gerais da iniciativa, mas tudo mudou. “Infelizmente, não temos a Festa do Natal como a conhecemos, que, para nós, é uma oportunidade de estarmos com as pessoas que nos são queridas e com as quais estamos o ano inteiro. No entanto, quisemos quebrar barreiras e convidámos as pessoas, de uma forma muito pessoal, para estarem connosco, para celebrarem este Natal de uma forma diferente”, refere.

A pandemia não tira a ambição da instituição de ir ao encontro e estar ao lado das pessoas em situação de sem-abrigo. “Tudo foi montado e planeado com as autoridades de saúde. Tivemos, desde o primeiro minuto, um contacto muito próximo, tanto com a DGS - Direção-Geral da Saúde, como com as autoridades de saúde locais competentes, para, também nós, não sermos um foco de qualquer problema. Reduzimos o número de atendimentos, reduzimos também o número de serviços, infelizmente, mas ficámos com aqueles que são, na nossa ótica, essenciais”, garante Guilherme.

 

Cobrir a cidade

Esta Ação de Natal da Comunidade Vida e Paz ia ter lugar ao longo de três dias, em dois pontos de Lisboa, em simultâneo, de forma a “cobrir os pontos nevrálgicos da nossa atuação”. No dia 18, a iniciativa decorreu então na Gare do Oriente e também junto à Estação Ferroviária de Santa Apolónia. No dia seguinte, sábado, a Ação de Natal teve lugar no Rossio e em Alcântara. No Domingo, 20 de dezembro, a equipa de Natal esteve na Avenida Sidónio Pais, nas proximidades do Pavilhão Carlos Lopes, e também na Amadora, mais concretamente no Bairro 6 de Maio. “Vamos ter serviços ligados à cidadania. Estamos a falar de uma ligação por teleconferência, com o IEFP - Instituto do Emprego e Formação Profissional e a Segurança Social, dois serviços essenciais nesta população com quem trabalhamos”, referia Guilherme, ao início da manhã do primeiro dia. Paralelamente, e em parceria com o Instituto de Registos e Notariado, 46 pessoas em situação de sem-abrigo iriam ter a oportunidade de solicitar, “de forma gratuita”, a emissão ou renovação do Cartão do Cidadão. “Esta população não pode ser deixada de parte, porque não tem o mesmo acesso que todos nós. Não ter o Cartão de Cidadão é despir a pessoa de cidadania. Foi mais um dos motivos para não deixarmos de estar na rua e de estarmos com as nossas pessoas”, observa este voluntário.

O serviço de saúde, nesta Ação de Natal, não foi esquecido pela organização. Contudo, devido à pandemia, foi feita uma nova parceria, para “não sobrecarregar” o Serviço Nacional de Saúde. “Vamos ter um serviço de saúde, mas este ano, excecionalmente, face àquilo que tem sido nos outros anos, não quisemos sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde, que está com uma missão muito importante – não é que esta, nossa, não seja, mas é uma missão muito árdua. Estamos muito gratos pelo esforço que o serviço tem feito e não quisemos onerar, ainda mais, o SNS”, explica Guilherme. Neste sentido, foi feita “uma parceria com o Hospital Lusíadas”. “Durante os três dias, vamos ter médicos e enfermeiros a fazer pequenas intervenções de saúde, como por exemplo a alguém que tenha uma dor de dentes, e poderá ter aqui acesso a medicação específica, ou a alguém que tem de mudar o penso – algo que é muito comum, infelizmente, nas pessoas que estão na rua”, frisa.

 

Mudar de vida

Junto a Guilherme estão mais três voluntários da Comunidade Vida e Paz. De colete azul vestido, identificativo da instituição, os rapazes são responsáveis por receber os convidados para esta Ação de Natal. Do acolhimento faz parte a medição da temperatura, a desinfeção das mãos e a oferta de uma nova máscara – mesmo que o convidado traga uma colocada. Depois, encaminham, um a um, e de forma individual, os convidados, até à carrinha onde está Diogo Pereira, psicólogo do Espaço Aberto ao Diálogo, valência da Comunidade Vida e Paz. “Hoje, o que eu vou estar aqui a fazer é um bocadinho o que fazemos lá no Espaço, que funciona em Chelas: ouvir a pessoa, para nos enquadrarmos no que se passa, e perceber quais são as necessidades imediatas, se têm problemas com a Justiça ou com a Segurança Social, que depois são entraves para requerer o rendimento social de inserção. Acredito que esta Ação de Natal vai facilitar um pouco, nesse aspeto”, desejava este jovem psicólogo, de 30 anos, que chegou à Comunidade Vida e Paz no final de setembro e que estava a viver a sua primeira ‘festa natalícia’ da instituição.

Questionado sobre a sua maior esperança para estes dias, Diogo lembra a missão da Comunidade Vida e Paz, de criar relação para ajudar a pessoa a mudar de vida. “A minha esperança é que consigamos ajudar as pessoas que, pelas suas condições e situações, não se deslocariam ou não pediriam ajuda. Que esta ação possa ser, de facto, um presente de Natal para a pessoa, em termos de ajuda”, responde.

Após a conversa com este profissional, os convidados são encaminhados pelos voluntários da Comunidade Vida e Paz até outra carrinha da instituição, estacionada a poucos metros. Neste local, é oferecido um kit, com produtos de higiene, bens alimentares e roupas. Guilherme Fontes sublinha a inclusão, neste kit, de artigos de proteção pessoal, como a máscara e o álcool gel. “Todas as noites que saímos para a rua, as pessoas pedem máscaras e álcool gel. São produtos que têm um custo financeiro e que estas pessoas não têm acesso. Fizemos questão de colocar neste kit alguns desses artigos, para também tentar minimizar ao máximo os riscos que estas pessoas possam ter no seu dia-a-dia”, explica este coordenador-geral, garantindo que os voluntários estão “entusiasmados” com esta Ação de Natal, apesar de reconhecer que “lhes falta a adrenalina da habitual Festa de Natal”.

 

‘Não nos abandonem’

Para Guilherme, nesta Ação de Natal fica a faltar a Missa. “Muita gente nos pergunta pela tradicional celebração da Eucaristia de Domingo, geralmente presidida pelo senhor Cardeal-Patriarca. Notamos que esse conforto espiritual vai fazer falta a muitas pessoas. Foi com muita pena que não conseguimos encontrar uma solução, mas sabemos que, com certeza, estas pessoas estão nas orações e no pensamento do senhor Cardeal-Patriarca e é essa mensagem que procuramos transmitir”, partilha este voluntário, lembrando “as iniciativas espirituais” da Festa de Natal habitual, como “as confissões, os momentos de oração ou a partilha de orações à chegada”. “Lembro-me que as pessoas levavam consigo mensagens do Papa Francisco… são também estas coisas que fazem falta a este Natal diferente”, considera.

Guilherme Fontes faz parte das equipas de rua “há já alguns anos” e participa na Festa de Natal desde os 18 anos. “Esta teria sido a minha 15.ª edição… A minha ligação à Comunidade Vida e Paz tem alguns anos e vem de família. Fui puxado por um familiar e eu também já trouxe um primo, um irmão e a mãe! É muito engraçado perceber que vamos construindo não só esta família em comunidade, mas também trazemos a nossa e juntamos a esta comunidade maior”, refere este jovem, que já foi advogado, já trabalhou na área do lobbying, em Bruxelas, e agora tem empresas na área da Tecnologia. Do tempo de pandemia, Guilherme assume que “houve o medo de falhar” e de deixar as pessoas que apoiam “sem este abrigo” e, portanto, “mais expostas, mais sozinhas e mais abandonadas”. “A comunidade nunca parou. Mesmo naquele pico inicial da pandemia, nunca deixámos de ir à rua nenhum dia. Reforçámos, até. Estive nessas noites e foi de partir o coração termos 600, 700, 800 ceias numa noite. É um número completamente astronómico. Fiz muitas voltas e nunca mais me esqueço de uma frase que me foi dita: ‘Não nos abandonem’. Foi um pedido de desespero e são palavras que, ainda hoje, mexem muito comigo”, conta, destacando “o apoio da sociedade civil, das empresas, dos nossos benfeitores, particulares e não só, que estiveram sempre connosco”. “Não houve desespero, porque houve este sentimento de comunidade. Sentimos que as pessoas estavam connosco e, sobretudo, com as nossas pessoas. Sentimos esse conforto e calor humano. Portanto, não era uma pandemia que nos ia parar. Com pandemia ou sem pandemia, as pessoas continuam a precisar de nós, e nós continuamos a querer estar com as pessoas”, garante este voluntário da Comunidade Vida e Paz.

 

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Mensagem da diretora-geral da Comunidade Vida e Paz, Renata Alves

“Numa época natalícia altamente atípica e que nos apela às restrições de contacto físico, conseguimos organizar a Ação de Natal da Comunidade Vida e Paz e, durante estes 3 últimos dias, foi possível manter os gestos e a troca de afetos, respeitando as medidas de segurança. Graças à capacidade de adaptação, à confiança na Instituição, foi possível ir ao encontro das pessoas, satisfazer algumas das suas necessidades e ajudar a resolver alguns dos seus problemas, provocar a verdadeira mudança e reconstruir sentidos de vida. O sucesso desta ação resulta do envolvimento de todos os Voluntários, Profissionais, Parceiros e Benfeitores que contribuíram com muito carinho, entrega e compaixão, disponibilizando os recursos necessários. A cada um deles, gostaríamos de demonstrar a nossa enorme Gratidão. Bem Hajam.”

Publicada na página no Facebook da Comunidade Vida e Paz (www.facebook.com/Comunidade.Vida.e.Paz)

 

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A Ação de Natal em números*

- 35 atendimentos com serviços

- 131 atendimentos sem serviços

- 48 atendimentos de saúde

- 23 atendimentos de Segurança Social e IEFP

- 13 encaminhamentos para o IRN - Instituto dos Registos e Notariado

- 22 encaminhamentos para o EAD - Espaço Aberto ao Diálogo

- 35 atendimentos EAD, Segurança Social e IEFP

- 72 atendimentos de barbeiro

* dados disponibilizados pela Comunidade Vida e Paz no Facebook da instituição

texto e fotos por Diogo Paiva Brandão
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