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Patriarcado de Lisboa celebra padroeiro, São Vicente (22 de janeiro)
Vida marcada pela caridade e pela pregação
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Quem foi São Vicente, o padroeiro do Patriarcado de Lisboa? Qual a ligação do barco e dos corvos ao diácono e mártir? Estas e outras questões sobre São Vicente são respondidas por Isabel Alçada Cardoso, estudiosa do cristianismo antigo, que em 2004 foi comissária da exposição dos 1700 anos do martírio de São Vicente. “Ele era conhecido não só pelo exercício da caridade, mas também pela pregação”, resume.

 

São Vicente nasce no século III, em Huesca, Espanha. Os pais, Eutício e Enola, eram cristãos. “Ele, em pequeno, vai para Saragoça, que era uma grande diocese, onde começa a fazer os estudos junto do bispo e chega a diácono e depois a arcediago, ou seja, a responsável dos diáconos. Aos diáconos, neste período, era confiada, de alguma forma, a administração da diocese. São Vicente estaria talvez nos 20 anos, era um rapaz novo”, começa por contar Isabel Alçada Cardoso, ao Jornal VOZ DA VERDADE. Na atividade de diácono, este ainda jovem “exercia a caridade, com muita gente à sua volta”. “Portanto, toda aquela comunidade que se reunia em torno de Saragoça conhecia São Vicente. Aquilo que podemos ler, do que está publicado, é que, de facto, ele era muito querido do povo”, assegura esta estudiosa, destacando ainda, do perfil do padroeiro do Patriarcado, o dom da pregação. “Acresce um outro aspeto: é que, ao que parece, o bispo Valério teria dificuldade com o dom da palavra e, portanto, foi confiado também a São Vicente grande parte da pregação. Ele era conhecido não só pelo exercício da caridade, mas também pela pregação”, esclarece.

 

O martírio de São Vicente

Como surgiu, então, o martírio de São Vicente? Isabel Alçada Cardoso lembra que “as perseguições aos cristãos começam no ano 64, em Roma, com o imperador Nero”. “É importante ter presente que as perseguições não tiveram sempre a mesma intensidade e não foram sempre em simultâneo em todo o território. No início do século terceiro, temos uma grande perseguição, que apanha o Norte de África; mais tarde, vai-se alargar à Gália, que é hoje a França. E é a perseguição de Diocleciano – uma grande perseguição por todo império, que chega à Península Ibérica –, no final do século terceiro, início do século quarto, que levará ao martírio do diácono São Vicente, como também, por exemplo, de Veríssimo, Máxima e Júlia, conhecidos como os mártires de Lisboa”, destaca.

Os cristãos eram perseguidos “por vários aspetos”, mas “um deles é porque no Direito romano era proibida a associação”. “Ora, a reunião dominical, a Eucaristia celebrada ao Domingo, era uma reunião. Portanto, eles eram perseguidos porque iam contra a lei romana. Para se ter uma ideia, do ponto vista humano, as pessoas eram presas, torturadas e depois, nestes casos, condenadas a pena de morte, em público. Sabemos isto devido às ‘Atas do martírio’, que publica o diálogo estabelecido entre o governador e o réu, entre os quais está o diálogo com São Vicente”, conta.

No ano 304, São Vicente é então preso em Saragoça e é levado para Valência, “sobretudo para o afastar dos seus amigos, daquelas pessoas que o ouviam”. “Ele é ainda muito novo, na casa dos vintes, é feito prisioneiro e é martirizado, numas telhas quentes – há, até, o milagre associado, de que as telhas se transformaram em rosas”, conta esta estudiosa.

 

Corvos e islamização

São Vicente é sepultado nos arredores de Valência. “Ele tinha uma grande aura – era já muita gente que lhe tinha grande devoção – e o governador de toda aquela região, Daciano, atira o corpo de São Vicente para uns pântanos, porque pretendia que o corpo fosse comido pelos animais e desaparecesse, para não haver veneração, uma vez que os locais onde os mártires eram sepultados eram locais de grande devoção”, refere Isabel. É aqui que se associam os corvos a São Vicente. “Naquele local, passa-se algo que é contado em vários textos e documentos. É que os corvos, que normalmente são animais predadores, defenderam o corpo de São Vicente de outros animais selvagens. Desde aí, os corvos estão sempre associados a São Vicente”, salienta.

A comunidade cristã que existia na zona de Valência pega então no corpo de São Vicente e vai sepultá-lo. “O cemitério onde estava o corpo sepultado, passa também a ser local de grande devoção. Acontece que, com a islamização da península, o corpo é levado, porque era destruído tudo o que fosse sepulturas, sobretudo daquelas pessoas que tinham grande veneração. Portanto, o que muitos cristãos fizeram, por todo o lado, foi pegar nas relíquias, nas ossadas, e fugir. Estávamos no século oitavo, nono, décimo, e há ali um período em que não sabemos nada de São Vicente”, garante esta estudiosa.

 

União de poderes

Por volta do século XI, “D. Afonso Henriques, que estava na sua tarefa da conquista de Portugal, quando está a caminho de Lisboa encontra-se com São Teotónio, que lhe diz que havia uma comunidade de monges no Algarve e que se falava de um santo, um mártir dos primeiros séculos que estaria ali sepultado”. O primeiro Rei de Portugal, depois da tomada de Lisboa, em 1147, envia uma armada ao Algarve para ver se encontram algo. “Vão duas, e penso que só à terceira, a armada de D. Fuas Roupinho, vê um conjunto de corvos. Escavam e encontram as ossadas”, conta.

D. Afonso Henriques queria trazer São Vicente para Lisboa “por um motivo”. “É que ter umas relíquias de um mártir do período das perseguições cristãs é algo muito importante. E a fama de São Vicente tinha chegado cá. Além disso, São Vicente toma esta característica que sempre teve, e que nós vemos aqui, na Sé, a 22 de janeiro de cada ano: é que une não só o poder religioso, isto é, as pessoas da Igreja, como o poder político. São Vicente vem para Lisboa não porque o bispo dissesse, mas porque o rei mandou vir”, observa.

São Vicente é também muito associado a um barco. “São Vicente vem do Algarve para Lisboa, por mar, em grande pompa e circunstância. E essa é a razão do barco, que está associado ao santo. Se virmos uma antiga bandeira de Lisboa, uma bandeira em seda, bordada a ouro, tinha não só o barco, mas o corpo com resplendor e os corvos. Ou seja, o barco tem a ver especificamente com Portugal; os corvos, tem a ver com o início. E estes são os atributos principais de São Vicente, para além da palma, que quer dizer que é mártir, e a veste diaconal, por ser diácono”, explica Isabel.

 

Ligação à Sé

São Vicente chega a Lisboa a 15 de setembro de 1173, à Igreja de Santa Justa, “que já não existe e onde hoje está situada a loja Pollux”. A chegada das relíquias a Lisboa trouxe também “um grande celeuma”. “A Sé estava em construção, mas o altar já tinha sido dedicado, e o deão do Cabido, Gilberto de Hastings, manda vir, no dia seguinte à chegada a Lisboa, as relíquias de São Vicente para a Sé. O Cabido entendeu que um santo destes não podia ficar na Igreja de Santa Justa e tinha de vir para a Sé. Foi um grande celeuma, porque nem sequer perguntou ao rei”, relata.

São Vicente veio então para a Sé. “Conta-se que tinha um túmulo elevado, no altar-mor, com umas colunas – tanto que, aquela imagem que se atribui, com alguma certeza, ao pintor Nuno Gonçalves, de São Vicente atado a uma coluna, seria uma imagem dele na Sé”, refere esta estudiosa. Lisboa tinha então uma população em que os cristãos eram sobretudo moçárabes, “portanto árabes de nascimento, mas cristãos”. “Muitos dos moçárabes vinham da Espanha mais interior e tinham uma grande devoção a São Vicente”, salienta Isabel Alçada Cardoso.

No terramoto de 1755, “um dos grandes problemas foi o grande incêndio na Sé, que destruiu o cartório e as ossadas também arderam”. “Depois, foram todas reunidas num cofre e existe atualmente, na Sé de Lisboa, a mão de São Vicente como relíquia, bem como uma série de ossadas, que estiveram visíveis na exposição dos 1700 anos do martírio e estão no Tesouro da Catedral”, frisa.

 

Santo impopular?

Sobre a devoção da cidade a São Vicente, esta leiga refere que o diácono e mártir “tem esta característica de ter altos e baixos no que diz respeito à devoção, à popularidade”. “Há descrições de procissões de velas, de uma quantidade enorme de atos de devoção, e há momentos que são completamente de esquecimento de São Vicente. Até ao século XIII-XIV, São Vicente era de facto o grande santo de Lisboa – tanto, que era o padroeiro principal da cidade –, só que apareceu Santo António, muito mais popular, um santo português, que tinha nascido aqui em frente à Sé, e Lisboa passou a assumir como padroeiro principal Santo António e secundário São Vicente. O Patriarcado manteve São Vicente como padroeiro”, observa, lembrando que, “apesar disso, a Câmara Municipal de Lisboa não retirou dos seus símbolos, pela cidade toda, o barco e os corvos”. “Podemos dizer que São Vicente é talvez mais erudito e Santo António mais popular. Mas isso não faz de São Vicente um santo impopular. É, é menos conhecido. São Vicente apanhou sempre mais a elite, de alguma forma, e nunca chegou propriamente a ser um santo popular, apesar de, em determinados momentos, se virmos os milagres que se contam, serem milagres populares”, destaca Isabel, lamentando que, de um “modo geral”, São Vicente seja “muito pouco conhecido”, porque “as pessoas não conhecem o cristianismo antigo”.

 

Atualidade de São Vicente

Para Isabel Alçada Cardoso, “já não vivemos numa sociedade de cristandade”. “A forma de viver o cristianismo deve olhar para como é que os primeiros cristãos viviam, sobretudo durante os primeiros séculos, até ao século quarto, quinto, sexto. Como é que eles enfrentaram muitos dos problemas, em contextos diferentes, com tecnologias diferentes, mas a atitude cristã aprende muito da atitude destes primeiros cristãos e destes mártires, porque é uma forma de estar que não dá tudo por adquirido, mas que percebe a importância do testemunho dado na sociedade do seu tempo, no contexto em que viviam, com as dificuldades que tinham”, considera. Neste sentido, “foi nestas vidas dadas, testemunhadas, vivendo o quotidiano, que a difusão do cristianismo, ou seja, a missão, aconteceu”. “Por vezes, estamos à procura de fórmulas mágicas e, ao conhecer estas vidas, percebemos que já lá está tudo. O que importa é sermos realistas, como eles eram, tendo em conta a sua realidade, percebendo que tem muitas coisas agrestes, muitas dificuldades, mas que nada disso retira a sua relação com Cristo e o testemunhar aquilo que vivem”, sublinha.

O “grande desafio” é, assim, “conhecermos São Vicente”. “Neste momento, grande parte do que está disponível de São Vicente está em português, através dessas publicações do Cabido e de outras. Portanto, o grande desafio é ler”, termina.

 

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Perfil

Paroquiana da Sé, Isabel Alçada Cardoso é uma estudiosa de São Vicente. “Sobretudo nos últimos anos, tenho estudado e sou, de facto, uma apaixonada pelo cristianismo antigo, ou seja, pelas raízes cristãs, para perceber melhor o cristianismo que estamos a viver hoje”, explica. E assim chegou a São Vicente. “Foi numa altura em que o Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano foi desafiado, pelo Cabido da Sé, em 2003, diante da celebração dos 1700 anos do martírio de São Vicente, e eu conhecia de São Vicente aquilo que a maioria das pessoas conhece – e não era muito”, lembra. Falou então com diversos especialistas – “como o professor Pires do Nascimento, o Prof. Saúl Rodrigues ou a Dra. Irisalva Moita” – e recorreu às suas obras. “Foi-me dado um desafio, mergulhei em São Vicente e comecei a ler tudo o que havia sobre o santo”, frisa.

 

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Ano Santo Vicentino

Em 2004, o Cardeal-Patriarca de Lisboa D. José Policarpo declarou o Ano Santo Vicentino, com o objetivo de celebrar os 1700 anos do martírio de São Vicente, e Isabel Alçada Cardoso recorda “a exposição sobre São Vicente”, além de “um conjunto de catálogos e eventos”. “Quisemos pontuar o ano santo não só do ponto de vista da Igreja, propriamente dita, com peregrinações, como também do ponto de vista cultural. A grande preocupação foi ter aquelas coisas que não estavam disponíveis em língua portuguesa, fazer as traduções, promover a sua divulgação e reuni-las num texto que pudesse ser de acesso a todos”, revela esta leiga, que foi comissária da exposição.

 

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Em 2004, nos 1700 anos do martírio de São Vicente, foi colocado, a pedido do Cabido da Sé, uma caixa junto ao altar, com ossadas de São Vicente.

texto por Diogo Paiva Brandão; fotos por Diogo Paiva Brandão e arquivo VV
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