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Liberdade de silêncio
É evidente a provocação! Num momento em que, na nossa vida pública – e publicada –, tanto se discute a «liberdade de expressão» opto por falar aqui de «liberdade de silêncio». Não entro, obviamente, no mérito desse debate. E, aliás, a provocação não será tanto minha, mas sobretudo do tempo de Quaresma em que entrámos e no qual, de forma muito irónica, esse debate acontece.

A ideia é simples: se é certo que liberdade e comunicabilidade vão de braço dado, é igualmente certo que liberdade e silêncio se promovem mutuamente. Fazer silêncio supõe ser livre. Ser livre supõe aquele escutar que só um silêncio autêntico torna possível.

Sermos livres de nós próprios. Eis uma manifestação de suprema liberdade a que o silêncio nos obriga. Não sabemos todos nós quão difícil é calar? Parece com frequência ser a impulsividade das palavras e discussões a tomar conta de nós – e não nós a tomar conta dela. Creio não me enganar se disser que é comum a experiência de que fazer silêncio nos exige um auto-domínio, uma contenção de nós próprios só ao alcance de quem vai crescendo na liberdade de si próprio. Talvez até nesta linha se pudesse interpretar o «silêncio de Deus». Diante de tantas coisas deste mundo, muito terá Ele de se conter para permanecer naquele silêncio que nos garante, precisamente, liberdade! Penso ainda nos «silêncios» de Jesus. O período anterior à sua vida pública. Diante de Pilatos. Ou, ainda, o Seu compasso de silêncio enquanto a multidão deixava cair não só as pedras, mas também as palavras com que pensara condenar e ferir uma mulher (cf. Jo 8, 1-11). é um silêncio livre e libertador – da condenada, como também dos condenadores.

O tempo quaresmal, devo reconhecê-lo, não fala imediatamente de silêncio. Fala de «escuta» e a partir desta sim propõe-nos o silêncio. E se o silêncio supõe liberdade, esta cresce também onde há escuta. Para lá de todos os ruídos, o encontrar o outro que a escuta sempre implica – sobretudo quando esse Outro se escreve com maiúscula: é Deus – é caminho para nos conhecermos, para sabermos quem somos e, portanto, para descobrirmos sempre de novo o que é ser livre e como se vive a liberdade. Mais que momento determinado ou acto particular, silêncio e escuta são atitudes próprias de quem sabe que o exercício da liberdade não se basta a si próprio, mas se orienta para o bem maior da sabedoria e da santidade.

A Quaresma surgirá, então, como desafio a ser livre de um modo muito distinto daquele que frequentemente nos parece ir sendo proposto. Esse modo passa por várias «escutas» – e a irónica provocação parece regressar! –, a maior das quais será a da voz, sempre discreta, do Senhor da Páscoa para a qual peregrinamos.