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Pe. José Maria Brito, sj
Ano Inaciano: celebrar o fogo lento da conversão

Mesmo em tempos marcados pela pandemia, continuamos apressados e, por vezes, sem saber onde repousar a nossa ansiedade e as nossas feridas. O medo e a incerteza trouxeram consigo a experiência de uma certa desorientação: não controlamos tudo e não nos é fácil viver sem a aparente segurança de ter tudo controlado. E é na pressa sem direção que acabamos por procurar algum consolo. E, contudo, a consolação tarda em chegar.

Iñigo López de Loyola vivia confiado na sua arte de lutador e cavaleiro. Era determinado e gostava de vencer. A 20 de maio de 1521 iniciava-se a batalha de Pamplona. Iñigo estava presente e, seguro da sua valentia, resiste. Mas acabaria por ser derrotado, ficando gravemente ferido com a perna estilhaçada por uma bala de canhão. E, a partir daí, este cavaleiro de Loyola perdeu muito do controlo que tinha sobre a sua vida e foi obrigado a um longo tempo de convalescença. Um fogo lento que a partir de uma ferida mudaria o seu nome e a sua vida.

A Companhia de Jesus em todo o mundo, deu início no dia 20 de maio ao Ano Inaciano, celebrando o começo do demorado processo de conversão de Santo Inácio de Loyola, assinalando uma derrota da qual Deus tirou muito fruto. Numa carta enviada aos seus companheiros jesuítas, o P. Arturo Sosa, Geral da Companhia de Jesus, sublinhava o modo como a luta interior e a conversão de Inácio o conduziram a “uma familiaridade muito próxima com Deus”, acrescentando que “esta familiaridade, este intenso amor, permitiram-lhe encontrar Deus em todas as coisas e inspirar outros para formarem juntos, um corpo apostólico, cheio de zelo missionário.”

Que luz nos pode trazer este processo?

Não controlamos tudo

Não nos é fácil lidar com o nosso limite, nem aceitar o tanto que não controlamos. No caso de Inácio, esse desconcerto acabou por levá-lo a descobrir no seu interior o desejo de acertar com a vontade de Deus. Mas esta confiança não foi automática. Precisou de ser purificada de um enorme voluntarismo, de um heroísmo disfarçado de um falso ascetismo. A confiança em Deus partindo da sua própria vulnerabilidade, da contingência que não se encerrou em desespero foi um passo essencial no caminho de Inácio.

Não nos convertemos sozinhos

A História da Salvação mostra-nos que ninguém se salva sozinho. Somos parte de um povo. Inácio passou por muitos momentos de solidão em que lutou com Deus. Caminhou sozinho demorados quilómetros. Mas este peregrino compreendeu também que a conversão, o reorientar a vida para Deus não é um caminho solitário. E, por isso, quis caminhar juntamente com outros companheiros com os quais descobriu o convite de Deus para fundar a Companhia de Jesus.

Deus é a única segurança

Ao longo da sua história a Companhia de Jesus conheceu diversas derrotas. Tal como na primeira de todas elas, cada derrota é sempre o convite a reconhecer em Deus o Único necessário que nos segura, o Único que é capaz de transformar as nossas feridas em caminho. Isto não significa que “Deus nos manda” feridas, mas significa que nunca nos abandona a elas.

Além dos 500 anos da Batalha de Pamplona que se assinalaram no passado dia 20 de maio, os jesuítas de todo o mundo vão também comemorar os 400 anos da Canonização de Santo Inácio de Loyola e de São Francisco Xavier a 12 de março de 2022, data em que também serão evocados os 400 anos da Canonização de Santa Teresa de Ávila, Santo Isidoro e São Filipe Neri. O Ano Inaciano terminará a 31 de julho de 2022 em Loyola, dia em que se celebra a festa litúrgica do Santo espanhol, no aniversário da sua morte.

Que graças se esperam deste tempo jubilar?

Antes de tudo a graça de não esconder, nem fugir das feridas. Num tempo em que tanta dor se encontra por cicatrizar, o caminho de Inácio e dos seus companheiros pode ajudar-nos a encontrar caminhos a partir das nossas feridas. Fazer delas lugar em que se revela a ressurreição.

Na sua mensagem de abertura do Ano Inaciano em Portugal, o P. Miguel Almeida, provincial dos jesuítas portugueses, recordou um momento do Evangelho de São João em que Jesus mostra as suas feridas aos discípulos e eles se alegram. E questiona o P. Miguel Almeida:

“Ter-se-ão os discípulos alegrado pelas feridas do seu Senhor? Claro que não! Alegram-se porque aquelas feridas permitem identificar o Mestre. Passaram a fazer parte da sua história, da sua identidade mesma. Aquelas feridas, também elas ressuscitam e surgem, já não como marca de dor e sofrimento, mas somente como marca de amor e entrega total.”

Partindo da experiência dos Exercícios Espirituais, a Espiritualidade Inaciana abre caminho a um encontro pessoal com Deus. Mas a experiência de Deus não pode ser limitada por nenhum intimismo ou individualismo. E, por isso mesmo, o Ano Inaciano é um tempo para pedir a graça de renovar o sentido de pertença a um corpo apostólico unido pela missão comum recebida de Jesus, apontando o caminho para Deus que é sempre maior do que as nossas ideias, os nossos medos e as nossas crises. Esta missão passa também por um olhar capaz de ver toda a realidade a partir da novidade que a misericórdia e a gratuidade de Deus trazem à nossa vida. Este horizonte está expresso no lema escolhido para o Ano Inaciano: “Ver novas todas as coisas em Cristo”.

Num mundo em que se experimenta a desorientação, em que é difícil aprender a viver a insegurança de um modo frutuoso e em que as marcas deixadas pelo isolamento podem fazer-nos perder o sentido do serviço, este ano é um tempo privilegiado para acolher a pergunta pelo sentido da vida. É também a oportunidade para converter a nossa sensibilidade a Jesus, estando atentos às feridas da criação que marcam a vida de tantas pessoas, de tantas comunidades e da própria terra.

A conversão é um processo lento que passa por nos deixarmos surpreender por Deus que se aproxima sempre da nossa realidade. A consolação, de que tantas vezes nos fala Santo Inácio, não é um mero sentir-se bem. É saber-se visitado por Deus que abre cada uma das nossas feridas, cada um dos nossos encontros e cada experiência de espanto aos frutos da Ressurreição. Que o Ano Inaciano nos ajude a acolher o fogo lento da conversão.

 

foto por Ricardo Perna