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Guilherme d'Oliveira Martins
Começou a ensinar-lhes muitas coisas…

Jesus disse aos Apóstolos: «“Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco”. Havia, de facto, tanta gente a chegar e a partir que não tinham tempo nem para comer. Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e afastado. Muitos viram-nos partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles. Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas» (Mc., 6, 30-34). Esta disponibilidade de espírito é um exemplo prático que não devemos esquecer. Trata-se do contrário da indiferença e é uma lição de espírito e cidadania. Neste estranho tempo em que a pandemia nos deixa sinais contraditórios, devemos compreender que a atenção e o cuidado são marcas que não devemos esquecer.

Num recente inquérito à opinião pública, as pessoas consideram que as medidas contra a Covid-19 foram positivas, mas queixam-se que a democracia se viu limitada. É um julgamento natural. Importa, porém, compreender que fomos surpreendidos por uma enfermidade que continuamos a desconhecer. A emergência de novas estirpes diz-nos que todo o cuidado é pouco e que desconhecemos em absoluto como e quando nos vamos libertar da peste. Precisamos, contudo, de atenção e espírito de prevenção. É por isso que se diz que a liberdade está limitada. Mas, não se esqueça, que a liberdade e a autonomia, inerentes à dignidade humana, devem ser protegidas como valores frágeis que são. Se devemos impedir os abusos de poder, temos de perceber que o estado de necessidade obriga a uma autolimitação da autonomia individual. Etimologicamente a palavra latina “libertas” relaciona-se com “libra”, ou seja, com a “balança”, cujos pratos têm de estar equilibrados – considerando a relação entre nós e os outros. A liberdade pressupõe a compreensão do lugar do outro e da nossa responsabilidade. Eis por que somos levados a limitar os nossos movimentos, fazendo-o como ato de inteligência e não por imposição de um tirano. No fundo, protegendo-nos, rompemos a cadeia de transmissão de um vírus que é mortal, assegurando que os mais vulneráveis não sejam atingidos e condenados.

Eis por que razão a Igreja católica cumpriu escrupulosamente as regras preventivas, em nome do primado do amor ao próximo. E em que ponto estamos? A vacinação tem de prosseguir com eficácia e celeridade. A testagem sistemática tem de ser feita, para evitar que os assintomáticos transmitam a doença aos vulneráveis. E as máscaras têm de continuar a ser usadas devidamente, ainda que incómodas. Para salvar vidas e reduzir a pressão sobre os hospitais tudo vale a pena. O “estado de necessidade” é uma forma de proceder excecionalmente perante uma situação especial. Eis por que razão devemos estar de sobreaviso perante o egoísmo dos que preferem o bem-estar ao respeito dos outros. Que é a responsabilidade senão termos resposta para quem precisa de nós? A dignidade da pessoa humana não pode confundir-se com falta de constrangimentos. A diferença entre despotismo e liberdade está na capacidade de aceitarmos a imperfeição, sem renunciar a prosseguir a possibilidade de amanhã sermos melhores do que hoje. Edgar Morin, o grande pensador, que completou há dias cem anos de idade, com uma extraordinária vitalidade, repetiu num texto publicado no próprio dia de anos que não podemos continuar a aspirar a ter mais e mais, devendo empenhar-nos em ser melhores. Em vez do crescimento e do consumismo, precisamos de desenvolvimento humano. As austeridades passageiras têm de dar lugar à sobriedade permanente. Esta pandemia deu o alarme relativamente a uma ameaça à humanidade, outras ameaças virão, mais graves e ameaçadoras, a começar no risco da destruição da natureza e no aquecimento global. Este descontrolo de um vírus tem a ver com o desencontro da humanidade com a natureza, como o Papa Francisco assinalou na Encíclica “Laudato Si’”. Há dias, a comunidade de monges beneditinos de Camaldoli, fundada há mil anos por S. Romualdo, o Cardeal José Tolentino Mendonça inaugurou a nova biblioteca com o fundo contemporâneo, instalada na paz da floresta, segundo as duas dimensões da experiência monástica, a solidão e a comunhão. A comunidade «vive na busca de Deus, na oração e no trabalho, e abre-se à partilha com os homens e as mulheres (…) sobretudo através da hospitalidade». “Ora, labora et lege”, eis o apelo de S. Bento. Porque o recordamos aqui? Já que somos chamados a refletir seriamente contra a indiferença e pelo compromisso que Cristo assumiu plenamente ao não deixar desamparadas aquelas ovelhas sem pastor…