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António Bagão Félix
Natal? Mas qual?
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Poderia escrever sobre a eutanásia parlamentar travestida de “morte medicamente assistida”. Poderia escrever sobre a injusta e calamitosa falta de resposta adequada do Serviço Nacional de Saúde que deveria velar pela “vida medicamente assistida”. Poderia escrever sobre a “coligação contra a vida” que começa no aborto livre (que, agora, e no melhor estilo neomalthusiano, se quer transformar – imagine-se! – num direito humano) e se prolonga por outras derivas da chamada cultura de morte. Poderia escrever sobre o único imposto que não necessita de aprovação parlamentar – a inflação – e que atinge mais dramaticamente os pobres pelo seu carácter regressivo. Poderia escrever sobre as alterações climáticas de costas largas que tudo justificam e a todos desresponsabilizam. Poderia escrever sobre o caudal corruptivo, o amiguismo e o lobbying subterrâneo que, danosamente, vêm minando a confiança. Poderia escrever sobre a exiguidade ética e a rarefacção da integridade e da exemplaridade. Poderia escrever sobre o cataclismo demográfico de um país envelhecido, agora retratado dramaticamente nos resultados do Censos 2021, mas olimpicamente ignorado pelos meios de comunicação social entretidos com os "dramas" do futebol doméstico e planetário. Poderia escrever sobre o despovoamento do Portugal que está fora dos principais meios urbanos, apesar das recorrentes loas discursivas. Poderia escrever sobre o desprezo a que é votada a família natural. Poderia escrever sobre um sistema educativo cheio de lacunas, com défice de exigência e prenhe de cartilhas educativas manipuladas com o dinheiro de todos. Poderia escrever sobre a ideologia de género proficientemente espalhada e doutrinada por intolerantes soldados da correcção política. Poderia escrever sobre os ditames do pensamento único, das causas dissolventes, do dinheiro fácil da Europa. Poderia escrever sobre o “sanitarismo linguístico” que vem sequestrando o país mediático e as redes sociais e é usado como uma poderosa forma de controle da mente, gerando novas e capciosas formas de censura social. Poderia escrever sobre o país político da táctica-do-dia-seguinte, que não o da estratégia-dos-anos-e-gerações-seguintes, pelo qual quase tudo se anuncia e quase nada se concretiza.

Nestas semanas que precedem o 25 de Dezembro, também poderia escrever sobre o híper consumismo (e consumição) da primazia do ter, do deter, do comprar, do usar, do trocar que tomou conta do Natal profano e que submerge a espiritualidade adventista. Paradoxalmente, a pretexto do Natal, tudo nos impele a viver sem Natal. Um tempo feito de efemeridade e trivialidade, vivido como um tempo de fora que nos comanda e não um tempo de dentro que nós comandamos.

Não! Hoje apenas quero lembrar-me do que é o Natal. O verdadeiro. O cristão. O da mensagem evangélica “Anuncio-vos uma grande alegria” (Lc 2-10), que foi recebido em primeiro lugar pelos pastores, os mais humildes entre os humildes. O Natal do coração, do espírito e da fé. O Natal da celebração do dom da Vida e da família. O Natal que não é apenas uma passageira data de calendário, mas um tempo de júbilo e de purificação.

O Natal da vitória da vida sobre a morte. Da luz sobre as trevas. Do personalismo solidário sobre o minimalismo ético e o hedonismo ilusório.

A essência do Natal é a reinvenção da quietude, da paz interior, da partilha, do esplendor da Caridade. É o culminar da virtude da Esperança. Por isso, é preciso olhar para dentro e, depois, partir para o outro. Na construção do bem e na opção preferencial pelos que mais sofrem as consequências da pobreza, da indiferença e da solidão.

O Papa Francisco resumiu eloquentemente a essência natalícia: “o silêncio favorece a contemplação do Menino Jesus, ajuda-nos a uma maior intimidade com Deus, na sua fragilidade e simplicidade de recém-nascido, deitado no presépio. Para celebrar o Natal, devemos redescobrir a surpresa e o espanto da pequenez de Deus no Presépio e na pobreza de um estábulo e tornarmo-nos pequeninos”.

Será demais reservar um tempo para participarmos, com alegria, no Natal do Menino Jesus, despojando-nos da ditadura da materialidade e do utilitarismo e abraçarmos na oração o espírito do Natal? É que a luz de Belém nunca se apagou. A luz do Natal está sempre acima do Natal das luzes.

 

António Bagão Félix

(Por opção pessoal, este texto não segue o chamado Acordo Ortográfico)