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Pedro Vaz Patto
Do diálogo e do insulto
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Foi com viva comoção que muitos assistiram à grande manifestação que se seguiu aos atentados de Paris, um grito de repúdio do terrorismo. A frase mais ouvida, Je suis Charlie, para muitos exprimia, antes de tudo, a solidariedade para com as vítimas, mesmo da parte de quem nunca se identificou com a linha ideológica do jornal Charlie Hébdo.

Mas por detrás dessa palavra de ordem também se nota a vontade de apresentar o estilo que tem caraterizado esse jornal (a sátira que não reconhece limites e ofende gravemente o que há de mais sagrado para crentes de várias religiões) como o símbolo (o ícone) mais representativo da sociedade de liberdade e tolerância em que vivemos e queremos continuar a viver. Isto já não me parece aceitável.

Subjacente a esta ideia está um conceito de liberdade individualista, que não se detém diante do respeito pelo outro, pela sua dignidade e pela sua sensibilidade. Para esta visão, só a própria liberdade será sagrada; mas uma liberdade que se torna vazia, um fim em si mesmo e não um meio para alcançar a verdade e a realização pessoal no relacionamento com os outros.

A liberdade de expressão tem limites em qualquer sociedade livre e democrática.

Quem instiga à prática do crime e do terrorismo (como fazem alguns dos mentores de atos como os dos atentados de Paris) claramente ultrapassa esses limites. E já várias pessoas foram recentemente condenadas em pena de prisão pela prática do crime de apologia do terrorismo apenas por terem elogiado os autores desses atentados.

Em Itália decorre atualmente uma campanha contra o racismo em que se afirma, numa alusão ao insulto racista: «as palavras também podem matar».

Em sistemas jurídicos como o português, a difamação e a injúria (isto é, a imputação a outrem de factos desonrosos e a emissão pública de juízos atentatórios da honra de outrem) são crime. Há que distinguir a crítica de atos, que deve ser livre, da ofensa que atinge a dignidade da pessoa visada, seja ela quem for.

É verdade que os tribunais são cada vez mais reticentes no reconhecer o respeito pelos sentimentos religiosos das pessoas como limite à liberdade de expressão. Talvez isso se explique pelo peso da memória de épocas em que a religião serviu para limitar a liberdade de expressão de ideias, mesmo de modo não ofensivo, ou também por preconceito laicista (não liberal) contra a religião. Parece que há “dois pesos e duas medidas”: aceitam-se mais facilmente limites à liberdade de expressão noutros âmbitos, como quando estão em causa discriminações em razão da raça, ou, mais recentemente, da orientação sexual (desapareceu a sátira a pessoas homossexuais que era, há alguns anos, muito comum em programas humorísticos, e isso é de saudar, mas já não o é a tentativa de limitar a expressão de ideias contrárias à prática homossexual).

Mas não pode ignorar-se que para muitas pessoas, não só uma ofensa verbal pode ferir mais do que uma ofensa física, como a ofensa ao que para elas é mais sagrado fere mais do que uma ofensa à sua pessoa ou à sua família. A ofensa aos sentimentos religiosos dos outros, avaliada segundo critérios de razoabilidade, também ultrapassa os limites da liberdade de expressão

Nada disto justifica o homicídio terrorista, ou atenua a sua gravidade. Matar e odiar invocando o nome de Deus é também uma blasfémia (di-lo o Catecismo da Igreja Católica, no seu nº 2148), talvez a mais grave de todas.

Mas a alternativa ao fanatismo fundamentalista não é a liberdade sem limites, nem uma sociedade onde nada é sagrado. Disse-o o Papa Francisco no seu discurso ao Parlamento Europeu: o fundamentalismo prospera onde há um vazio de valores (preenchendo da pior maneira esse vazio). E também não o é uma sociedade onde as religiões têm de se confinar ao espaço privado (por supostamente serem causa de conflitos), ou onde os muçulmanos têm de renegar a sua fé para se integrarem.

Afirmou a este propósito o cardeal Tauran, presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso: «as religiões não são parte do problema, são parte da solução». A alternativa ao fundamentalismo é uma sociedade de diálogo entre religiões e entre crentes e não crentes. Um diálogo que comporta a liberdade do debate de ideias e da crítica, mas também o respeito pelo outro e pela sua sensibilidade. O diálogo serve para construir a paz e a fraternidade, o insulto não serve.