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Sudão do Sul: a tragédia quase esquecida das crianças-soldado
A perda da inocência
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Deixaram de ser crianças cedo de mais. São quase todos rapazes. Foram raptados. Vestiram-lhes um uniforme, deram-lhes uma arma e mandaram-nos para o mato. Para a guerra. Só no ano passado, calcula-se que mais de 12 mil crianças foram transformadas em soldados no Sudão do Sul. São os novos escravos de que quase ninguém fala.

 

É o mais novo país do mundo mas transporta já consigo todos os defeitos da humanidade. A festa da independência, em Julho de 2011, durou pouco tempo. Menos de dois anos depois, o Sudão do Sul iniciou uma guerra consigo mesmo. É a pior das guerras, quando o inimigo está dentro de portas, fala a mesma língua, vive na mesma cidade, às vezes pertence, até, à mesma família.

Fevereiro. Homens armados invadem uma aldeia e fazem buscas casa a casa. Levam consigo oitenta e nove rapazes. Agora não se sabe deles. Sequestrados, muito provavelmente vão engrossar um dos muitos grupos armados que pululam no país. Quase todas estas crianças tinham pouco mais de 12 anos. Os pais, desesperados, perderam-lhes o rasto. É quase sempre assim. Só no ano passado, mais de 12 mil crianças serviram os senhores desta guerra.

 

Violência demente

O Sudão do Sul ganhou a sua independência em 2011, depois de uma longa e terrível guerra com o Norte. Tanta violência, porém, revelou-se insuficiente. Desde Dezembro de 2013 que o país está dividido entre partidários do presidente e do ex-vice-presidente. Entre os que seguem Salva Kiir e Riek Machar há mais ódio do que ideologia. Kiir pertence à etnia Dinka. Machar é da etnia Nuer. Como parecem hoje longínquos os discursos de Julho de 2011, quando ambos assumiram perante o mundo o desejo de construírem uma nação de paz, de progresso e de felicidade para as suas populações. A guerra civil já provocou dezenas de milhares de mortos e quase 1 milhão de refugiados. Unidade, Alto Nilo e Jonglei têm sido regiões palco de uma violência demente, quase animal. Há casos de pessoas mortas mesmo em Igrejas e mesquitas. Ninguém está a salvo em lugar algum. Os números são assustadores. Segundo as Nações Unidas, quase três milhões de pessoas precisam de urgente ajuda alimentar. O número cresce, quase para 7 milhões, se juntarmos à fome as doenças. No Sudão do Sul, hoje em dia, as populações precisam tanto de comida como de paz.

 

“Rezem por nós”

No epicentro desta loucura está também Malakal. Monsenhor Roko Taban diz que a violência que se abateu sobre a sua diocese foi como um “terramoto”.  Em Julho do ano passado, num par de dias, tudo se transformou. As cidades de Bentiu, Malakal e Bor ficaram irreconhecíveis. Cerca de 30 mil casas em ruína e mais de 100 mil pessoas sem nada para comer. Quantas destas famílias perderam também os seus filhos, “recrutados” à força? Oito meses depois, os golpes da violência continuam à vista de todos, como uma ferida que não consegue cicatrizar. “Os ataques foram brutais. Muitas das nossas igrejas e casas foram completamente destruídas e tudo o que tínhamos foi saqueado. Nós estamos num estado miserável”, reconhece Monsenhor Roko. Dirigindo-se aos benfeitores da Fundação AIS, D. Taban deixa um apelo: “Por favor, lembrem-se de nós nas vossas orações!”

 

Pobre país rico

As crianças são o elo fraco nesta tragédia regional que o mundo parece querer ignorar. Depois da fome da Etiópia e do genocídio do Ruanda, o Sudão do Sul parece apostado em acordar os fantasmas do apocalipse.

Talvez o facto de ser um país rico em petróleo explique esta voragem em que está mergulhado. Também é um país rico em armas, mas pobre em tudo o resto. As crianças, que são arrancadas à família e mobilizadas à força, são transformadas em soldados. Sem escrúpulos, dão-lhes um uniforme e uma arma. Ensinam-lhes a despejar as balas que enchem os carregadores e enviam-nas para o mato, para as frentes da guerra, para o abismo. Muitas destas crianças morrem. Mesmo as que sobrevivem às balas, morrem de alguma maneira. Perdem a inocência para sempre. Muitas destas crianças nunca mais são vistas. Mesmo que sobrevivam aos combates, mesmo que consigam fugir dos carcereiros, nunca mais se sabe delas.

 

Terra de ninguém

Esta região de África é quase uma terra de ninguém. Não é só no Sudão do Sul. Mais a Norte, na capital do Sudão, Cartum, calcula-se que haverá mais de 700 mil crianças que vivem nas ruas. Muitas terão sido também crianças-soldado. As que conseguiram fugir da guerra provavelmente irão cair nas mãos de gangues criminosos que as obrigarão à mendicidade, ou que as farão cair em tenebrosas cadeias de tráfico de órgãos.

Às vezes, é possível resgatar alguns destes rapazes. Quando já estão a salvo, normalmente em acampamentos das Nações Unidas ou de organizações humanitárias e da Igreja, em vez de brincarem como seria de esperar, começam a marchar como se estivessem ainda mobilizados, como se carregassem ainda uma arma, como se uma voz interior lhes desse uma ordem. É preciso sempre muito tempo, paciência e amor para tirar a guerra de dentro destas crianças-soldado. Às vezes é impossível.

texto por Paulo Aido, Fundação Ajuda à Igreja que Sofre
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