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Guilherme d’Oliveira Martins
Padre Manuel Antunes, S.J.
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João Bénard da Costa dizia que o Padre Manuel Antunes, que acompanhou o grupo de católicos da geração de “O Tempo e o Modo”, foi “um sinal de Deus e de caminhos futuros ou de caminhos do futuro”. O jesuíta foi um dos membros da comissão portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, que tanta importância teve na preparação da democracia, estando “em combates muito difíceis nos anos 60 e 70, antes dessa Revolução que ele analisou, como mais ninguém, nesse livrinho sublime a que chamou Repensar Portugal”… Também Luís Lindley Cintra disse, de modo muito claro: “Leiam Repensar Portugal… é um livro importantíssimo, quase diria é único pela reflexão e pelo espírito que o anima”. A atualidade da reflexão do Padre Manuel Antunes em “Repensar Portugal”, põe-nos perante o tema essencial da democracia – quando espreitam, um pouco por toda a parte, as tentações imediatistas e populistas, sob a falsa invocação do mero formalismo do voto. A legitimidade do voto é fundamental, mas tem de ser completada pela mediação permanente nas instituições democráticas. Os cidadãos têm ser representados e de participar, têm de se sentir legitimados. Uma “revolução moral” preocupava o pedagogo da democracia. A justiça, a solidariedade, a liberdade, a honestidade devem orientar a vida das instituições: de modo realista, “renovando as instituições existentes – e não apenas mudando-lhes os nomes – e criando outras que se imponham”. Nesse sentido, o Padre M. Antunes definia uma agenda, que pressupunha não encarar o Estado como novo Leviatã, produtor, planificador, omnipresente e invasor da esfera privada, pelo que se tornaria imperativo: desburocratizar, desideologizar, desclientelizar e descentralizar. Interiorizar a democracia obrigaria, assim, a assegurar a democracia do Estado e a democracia da sociedade civil. E ao Estado competiria revelar-se como consciência crítica da Nação, “na sua realidade de ser coletivo e histórico”. Não pode haver democracia sem haver consciência cívica, sem haver instituições representativas e mediadoras – só desse modo poderemos precaver-nos perante os perigos de manipulações e de condicionamentos ilegítimos. Num tempo em que a complexidade é a marca indelével do progresso humano, não podemos cair na tentação de resumir tudo a opções simplificadoras ou a caricaturas da realidade. Veja-se o que acontece quando a via referendária se sobrepõe à ponderação rigorosa das consequências de decisões difíceis – que não podem ficar prisioneiras da tirania do número, da indiferença ou da demagogia… É preciso tempo e reflexão.

E a dimensão cultural? “Sem crítica, a cultura instala-se no uniforme sem inspiração, no escolasticismo sem vontade de essencial, no dogmatismo sem nervo de verdade, e, por isso mesmo, em constante apelo à força do ‘braço secular’. Sem crítica, a querela instala-se por toda a parte: na rua e no palácio, na academia e na caserna, na cidade e no campo, durante a vida e post mortem”. E se a instituição a fortalecer é a democracia, o ideal a realizar é o bem comum. O Padre Manuel Antunes compreendia muito bem o género humano e a vida das sociedades – e daí a pertinência e intemporalidade desta reflexão. E em que consiste o bem comum? “Na existência de estruturas e instituições que em determinada fase histórica sirvam ao uso, à dignidade e à dignificação da comunidade; na vontade de solidariedade que une todos os membros dessa comunidade, de forma a que todos participem, na devida proporção, desse objetivo fundamental”. A encíclica “Pacem in Terris” de João XXIII e a constituição “Gaudium et Spes” do Concílio Vaticano II são claras nesse sentido. Importará cortar o passo à alternância entre anarquia e tirania – “uma comunidade pode ser feliz sem viver propriamente numa abundância material de lés-a-lés”. Em suma, num tempo em que se fala de austeridade, importa insistir na noção de sobriedade, que previne o desperdício e a corrupção, a injustiça e a exclusão, a desigualdade e a fragmentação social – com ensinava o Padre Lebret, cuja obra o Padre M. Antunes bem conhecia e que tanto influenciou a encíclica “Populorum Progressio” do Papa Paulo VI. À democracia e ao bem comum, haverá ainda de juntar um destino a cumprir – a universalidade. Que sentido teria a eminente dignidade humana se não fosse um valor universal? E lembramos o humanismo universalista que nos leva a Santo António de Lisboa ou a Pedro Julião, o Papa João XXI – e lembra a relação incindível entre diversidade e unidade, entre diferença e identidade. “Cada homem é uma exceção” – dizia Kierkegaard – também cada povo! E não fugimos à regra. “Um país na verdade culto e com cerca de um milénio de história vivida atrás de si – e que história -, só demitindo-se por completo e por completo desistindo de existir como um animal esgotado que se deita para morrer é que deixará de contar no concerto dos povos. Antes não».