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Pe. Alexandre Palma
Quem tem olhos, veja!
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A ressurreição reflecte-se no olhar. A ressurreição também acontece no olhar. É assim que os evangelistas a tratam, como facto corpóreo, mas também como evento ocular. E fazem-no com extremo cuidado. Nada do que dizem fica entregue ao acaso. Tudo encontra o seu lugar para que, com os protagonistas e os autores, também acerca do leitor se possa dizer: «Viu e acreditou» (Jo 20, 8). Mas nem por isso simplificam o processo. Ver é bem mais difícil do que parece. Os evangelistas sabem-no. Há que ver o vazio do sepulcro. Eis um primeiro paradoxo: ver o vazio. Há que ver para além do «jovem» (Mc), do «anjo» (Mt), de «dois homens» (Lc) ou do «jardineiro» (Jo) que se encontram à entrada do sepulcro. É que ver às vezes é também «desver», isto é, deixar de ver apenas e só o que sempre se viu. Eis um outro paradoxo. É preciso abandonar a rotina da visão. Por fim, ver é reconhecer. Há que ver a pedra removida ou as ligaduras depostas e reconhecer nelas sinais de vida. Vários são aqueles que, nos evangelhos, vêem Jesus sem logo o reconhecerem. Só quando chegam aqui, ao reconhecimento, começam a ver. Este será um derradeiro paradoxo. É como se até então fossem cegos, embora vissem.

A tradição cristã concedeu também uma importância singular à visão. Em sintonia com o seu substrato bíblico – porventura indo para além dele –, ela fez da visão uma questão teológica central. A eternidade em Deus definia-se como um acto de visão, a visio beatifica que caracterizava a vida dos santos e a sua comunhão com Deus. Sem filtros, seria ver imediatamente a Deus. Ser totalmente em Deus equivaleria a vê-lo. A eternidade e a intimidade com Deus pertenceriam, portanto, ao campo da visão. Para S. Tomás de Aquino, ver assim seria mesmo a realização plena da vida humana e, portanto, a sua verdadeira felicidade. A visão beatífica superaria todas as outras realidades humanas, como sejam a fé ou a razão. Dificilmente se lhe poderia atribuir estatuto mais elevado. A visão tornou-se o sentido da eternidade.

Não sei se todo este edifício doutrinal é causa ou consequência da supremacia que a visão veio a adquirir sobre os demais sentidos na cultura ocidental. Provavelmente será ambas. Mas para lá disso, ver a ressurreição não pode não ser a inauguração da visio beatifica, mesmo se ainda na economia das mediações. Ver a ressurreição é já, aqui e agora, intimidade com Deus e felicidade humana. Visio beatifica é já, pois, mesmo se de forma limitada e precária, contemplar o vazio que se enche de Deus e reconhecê-lo como tal. Visio beatifica é já, pois, reaprender a ver para descobrir a surpresa de Deus presente no que julgamos conhecido e dominado. Visio beatifica é já, pois, reconhecer o ressuscitado vivo, embora escondido, nos próximos de todos os dias. Porque a estrutura da ressurreição permanece coerentemente a mesma: ela continua a ser, em parte, um evento ocular. Hoje como então; aos de hoje como aos de então, a ressurreição dá-se a ver.