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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Por quem dobram os sinos?

Talvez nem todos saibam que a Rainha Maria Antonieta de França nasceu em Viena, no dia seguinte ao grande terramoto de 1755, e que teve como padrinhos de Baptismo os então Reis de Portugal. Mas é do conhecimento geral que foi casada com o Rei Luís XVI e que ambos foram guilhotinados, durante a Revolução Francesa.

Na altura em que a liturgia cristã recorda, em especial, os fiéis defuntos, vem a propósito, deste tempo e daquela infeliz rainha, recordar uma antiga tradição da Casa Real austríaca, a que Maria Antonieta pertencia pelo seu nascimento.

Segundo os usos e costumes da corte dos Habsburgos, os membros desta família real eram, por regra, sepultados na cripta da igreja dos Capuchinhos, em Viena. Era da praxe que, quando o cortejo fúnebre chegava a esse templo, era preciso tocar à sua porta, que se encontrava fechada. A este toque, alguém respondia do seu interior: Quem é? A resposta era tanto mais longa quantos fossem os nomes e títulos do defunto, enquanto membro da família reinante no império austro-húngaro. Ante um tão impressionante desfile de honrarias, era de esperar que as portas se abrissem de par em par, mas tal não acontecia. Pelo contrário, do seu interior, ouvia-se a seguinte resposta: Não conheço!

Batia-se de novo e, à mesma pergunta sobre a identidade do falecido, repetiam-se, mas de forma mais resumida, os tratamentos nobiliárquicos inerentes à sua pessoa. A resposta mantinha-se inalterada: Não conheço!

Uma terceira vez se percutia à porta do templo e, lá de dentro, ressoava de novo uma voz que inquiria: Quem é? A resposta era, então, dada nos seguintes termos: Um pobre pecador! Só então a igreja acolhia o corpo sem vida do membro da família real a sepultar, na cripta onde repousam os seus egrégios antepassados.

A moral da história é evidente: a entrada na eternidade só se franqueia a quem se confessa pecador e, consciente da sua indigência pessoal, pede por misericórdia o que sabe não merecer por justiça. Na morte, todos os seres humanos somos iguais, como iguais são também todos os fiéis à hora da partida para a eternidade, por muito alta ou baixa que tenha sido a sua condição eclesial ou social. Não em vão, na parábola do rico e do pobre Lázaro, é este que é acolhido no seio de Abraão, enquanto o opulento senhor da casa, junto à qual o mendigo jazia, é condenado às penas eternas do inferno.

É razoável que, na celebração das exéquias cristãs, se procure consolar os fiéis em luto, mas sem cair no excesso de, como por vezes acontece, ‘canonizar’ expeditamente o defunto, às vezes falseando a realidade da sua vida e vivência cristã. Dir-se-ia que, ao contrário da tradição austríaca, alguns fiéis defuntos entram na igreja, para o seu funeral, como simples pecadores, mas depois dela saem elevados aos mais altos píncaros da virtude e da santidade cristãs, não por obra e graça do Espírito Santo, mas do espírito mundano de quem converteu a homilia num momento de fútil exaltação social.

A Igreja não celebra a morte, mas a vida, à luz da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo: um funeral, mais do que evocação do óbito, deve ser, na realidade, a celebração pascal do nascimento dos fiéis para a vida eterna. Não se festeja o finado, mas Deus, que é Senhor da vida. Por isso, estão também a mais, nessas celebrações, as homenagens fúnebres e outras intervenções que, por muito saudosas e justas que possam ser, destoam sempre no contexto de uma celebração sagrada.

Um santo sacerdote, canonizado em 2002, considerava-se a si próprio como um pecador que ama Jesus Cristo. É o que todos os fiéis somos: pecadores que amam Nosso Senhor. Dessa caridade, maior ou menor, a Deus e ao próximo, depende também o destino eterno de cada qual porque, como dizia o místico, ao entardecer seremos julgados no amor.

Ao terminar a sua etapa terrena, os nossos irmãos defuntos não precisam dos nossos louvores, nem das nossas homenagens, nem das nossas lágrimas, nem flores, mas dos nossos sufrágios. Não lhes falte, pois, essa caridade, para que, quando estivermos na situação em que agora se encontram as benditas almas do Purgatório, tenhamos o consolo de quem reze por nós.