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Pedro Vaz Patto
Estados desunidos

As últimas eleições dos Estados Unidos vieram demonstrar a profunda e dilacerante divisão que atinge a população desse país. Uma divisão que atinge também a Igreja Católica.

Não pode ignorar-se a questão que, talvez mais do que qualquer outra, levou muitos católicos a apoiar Donald Trump. Ao contrário do que se verifica na quase totalidade dos países europeus, a questão da legalização do aborto não é, nos Estados Unidos, assunto encerrado. São várias as propostas legislativas que procuram, de várias formas, limitar a sua prática. Um papel decisivo a esse respeito cabe ao Supremo Tribunal e depende da orientação (sempre bem marcada, no que a esta questão diz respeito) dos juízes que para ele sejam nomeados. Nestas matérias, Donald Trump seguiu sempre as opções dos movimentos pró-vida, sempre com a oposição do Partido Democrático.

O presidente da Conferência Episcopal norte-americana, o arcebispo José Gomez relembrou a prioridade que a questão do aborto assume no magistério da Igreja, como se afirma no documento dessa Conferência Forming consciences for faithful citizenship, uma espécie de guia de exercício da cidadania de acordo com a doutrina social da Igreja.

Compreende-se essa prioridade: a vida é o primeiro dos direitos, as vítimas do aborto são as mais indefesas e inocentes, a prática do aborto assume dimensões inigualáveis.

Mas o que levou ao descrédito de muitos movimentos pró-vida foi a indiferença, ou até apoio acrítico, diante de outros aspetos das políticas de Donald Trump, radicalmente contrários à ética social cristã, além de contrários às mais elementares regras de civilidade. Até em outros aspetos da proteção da vida humana: a subalternização dessa proteção face à economia, no que se refere à gestão da pandemia; a insistência na execução de condenações à morte no fim do mandato, sabendo que outra seria a decisão do seu sucessor.

Como também recordou o arcebispo José Gomez, invocando o referido documento da Conferência Episcopal norte-americana, a questão do aborto é prioritária, mas não única. Ao mesmo tempo que criticou as opções de Joe Biden nessa matéria, assinalou outras, mais conformes à doutrina social a Igreja do que as do seu antecessor: em matérias de justiça social, acolhimento de refugiados e migrantes, pena de morte e combate às alterações climáticas.

Charles Camosy é professor de ética social da Universidade de Fordham e fez parte do grupo de políticos do Partido Democrático contrários à liberalização do aborto, os Democrats for life. Veio a deixar esse partido na sequência da cada vez maior marginalização desse grupo (que, na verdade, não tem hoje nenhum dos seus membros no Congresso). No seu livro Resisting throwaway culture – How a consistent life ethic ca unite a fractured people (New City Press, 2019), apresenta uma ética da vida “consistente” (isto é, completa e coerente), como um meio de unir um “povo fraturado”. A essa luz, analisa questões muito variadas, que vão do aborto, da eutanásia e da danosidade social da pornografia às da pobreza, do acolhimento de imigrantes, da pena de morte e da desumanidade do sistema carcerário.

Seria certamente essa uma forma de unir a sociedade norte-americana para além das dilacerantes divisões que a têm caracterizado, propósito que esteve bem presente no discurso de investidura de Joe Biden. Parece, porém, ainda longínquo um consenso quanto a essa “consistente ética da via”. Para já, serve um propósito de unidade partir do princípio de que a fronteira entre o Bem e o Mal não passa, na grande maioria dos casos, nos Estados Unidos como noutros países, pelas opções partidárias. Saber que nem tudo será bom ou mau em cada programa partidário é um princípio que só pode favorecer o diálogo.