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Pe. Alexandre Palma
Música: espelho e porta da Fé

«A música – dizia o teólogo suíço H.U. von Balthasar – contribui a dar forma ao divino». Há, na verdade, entre a música e a fé tanto de comum que as duas como que são tocadas por um só e mesmo mistério. Se perguntarmos a um crente o que é a fé, com grande probabilidade estaremos a colocá-lo em apuros. Não é fácil dizer o que é a fé. Mas se perguntarmos a um músico, a um compositor ou a um melómano o que é a música, estaremos a colocá-lo perante uma dificuldade em tudo semelhante. Também não é fácil definir o que é a música. Talvez a possamos descrever como a arte de gerar e combinar sons e silêncios, segundo determinadas leis, que suscitam em nós um determinado estímulo físico e emotivo. Ela é certamente isto. Contudo, o que a música faz em nós é mais, é maior e não é explicável apenas como fenómeno físico e acústico. Ela é, nas palavras do compositor inglês J. Taverner, «metafísica líquida». O que nela há de mais importante «não está na partitura». A irmanar fé e música está, pois, o encontro com um «não sei quê» que faz de ambas tão fascinantes quanto misteriosas.

Quando se fala da relação entre música e fé talvez se pense, quase imediatamente, no lugar da música na vivência da fé, na função que ela desempenha na sua expressão litúrgica e orante. Ou, ao invés, na fé como notável inspiradora de algumas das mais sublimes composições musicais. Uma e outra perspectiva, sendo absolutamente verdadeiras, não esgotam porém toda a extensão da admirável sintonia entre música e fé. Ambas têm ainda a capacidade de nos tocar como uma profundidade ao alcance de muito poucas coisas neste mundo. A este respeito, são muito interessantes as anotações do neurólogo O. Sacks acerca de um músico com a doença de Alzheimer: embora de nada se recordasse acerca de si e da sua vida, quando tocava o seu instrumento fazia-o na perfeição. Na experiência da fé verifica-se algo de muito semelhante: é impressionante notar como das últimas coisas que esquecemos são as orações, muito rezadas e há muito aprendidas. Da fé se pode dizer o mesmo que o filósofo E. Cioran dizia acerca da música: «ao que a música faz apelo em nós é difícil saber; é certo porém que ela toca uma zona tão profunda onde a própria loucura não consegue penetrar». Ou ainda o que poema de T.S. Eliot reconhece: «a música é ouvida tão profundamente/ que tu não a ouves,/ mas tu és a música/ enquanto a música dura».

Quer a fé quer a música percorrem a linha onde a sensibilidade e o pensamento se tocam, linha essa traçada no mais íntimo de nós próprios. Estará aqui, neste limiar entre o coração e a razão, o segredo do impacto misterioso e belo de ambas. Talvez tenha sido por isto que H.U. von Balthasar viu na música um modo óptimo de dar forma à experiência que, na fé, fazemos de Deus. Possivelmente em nenhuma outra criação humana se espelha de forma tão adequada o que a fé é e quer ser. Atravessar a «porta da fé» e ajudar outros a atravessá-la também tem pois qualquer coisa de musical. De deixar que a harmonia e a melodia da Palavra de Deus dêem ritmo íntimo ao nosso viver. De deixar que sintonias e dissonâncias do mundo sejam incorporadas na sinfonia maior de uma história com Deus. De deixar que tudo isto tome raízes naquelas profundidades do nosso ser que escapam ao alcance de qualquer doença do corpo ou da alma. De deixar, no fundo, que a fé seja a banda sonora do que somos e vivemos. Afinal, se é verdade o que dizia S. Weil, a música que fazemos e escutamos mais não é que uma forma de nos aproximarmos da musicalidade que há em Deus. Dizia ela: «O grito de Cristo e o silêncio do Pai compõem juntamente a suprema harmonia, aquela da qual toda a música não é senão uma imitação». Na vibração interior da música teremos pois não apenas um espelho, mas também uma via para o que pode ser uma autêntica ressonância interior da fé.